São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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De volta ao homem cordial

FERNANDO NOVAIS
RAÍZES DO BRASIL

Sérgio Buarque de Holanda Companhia das Letras, 220 págs. R$ 15,00
E m sequência à edição completa das obras de Sérgio Buarque de Holanda, esta publicação de ``Raízes do Brasil" incorpora o notável prefácio com que Antonio Candido enriqueceu esta obra clássica desde a 5ª edição (José Olympio, 1969), bem como o post-scriptum do mesmo autor que a acompanha desde a 18ª (1986), agregando finalmente um posfácio de Evaldo Cabral de Mello. Na trilha daquele prefácio, é praticamente impossível comentar este livro sem situá-lo diante de dois outros clássicos:``Casa Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre, e ``Formação do Brasil Contemporâneo" (1942), de Caio Prado Júnior (antecedido, em 1933, por ``Evolução Política do Brasil"). No conjunto, formam a trilogia das obras fundantes do ``redescobrimento do Brasil" -marca distintiva e definidora da ``geração de 30", naquilo em que se empenha na consecução do ideário do modernismo no Brasil. Na abertura do livro, a frase famosa -``somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra"- expressa de forma lapidar a questão central da identidade fugidia que se tentava descrever; e o tema atravessa todo o texto, extravasando para o conjunto da obra do grande historiador.
Dessas três obras inaugurais da revisão do Brasil, talvez a de Sérgio Buarque seja a mais rica e original: Gilberto Freyre, além de ``insights" geniais, mobiliza o aparato conceitual da antropologia e sociologia americana; Caio Prado situa-se numa ótica marxista, ainda que heterodoxa; Sérgio se inspira na tradição do historicismo (ou, como ele preferiria, historismo) alemão (cf. o ensaio sobre L. von Ranke), mas amplia ilimitadamente suas fontes de reflexão. Se Gilberto Freyre, dada a sua inserção social, pôde ser associado (de um modo um tanto reducionista, diga-se de passagem), sob certos aspectos, ao senhoriato da ``sucarocracia", Caio Prado esforça-se permanentemente em apresentar-se como intelectual orgânico do mundo do trabalho. Fica insinuada a possibilidade de aproximar-se Sérgio Buarque dos extratos médios, e o post-scriptum de Antonio Candido, através de mediações, aponta nessa linha, ao referir-se ao ``radicalismo potencial das classes médias".
Claro que essas associações não podem ter a pretensão de ``explicar" as formações discursivas em última instância, mas, quando conduzidas cuidadosamente através de mediações (como no caso de Antonio Candido), ajudam a esclarecer as linhas e percursos do pensamento analítico. Assim, não seria talvez despropositado ver no ecletismo amplo de Sérgio Buarque algumas marcas da indefinição e labilidade da classe média exatamente nos momentos de radicalização. Isto, evidentemente, enriquece sua obra, e ao mesmo tempo a torna de mais difícil assédio. De outro ângulo, Caio Prado e Gilberto Freyre formam um curioso contraponto. Ambos podem ser vistos, de algum modo, como expressões de duas regiões, que entretanto evoluem (à época) de forma divergente: São Paulo em franca ascensão econômica, o Nordeste em acentuado declínio. Gilberto Freyre, talvez por isso, analisa sempre o Brasil a partir de seu passado, isto é, daquilo que deixou de ser; Caio Prado, ao contrário, pensa sempre o país pelas suas potencialidades, isto é, pelo que ele pode vir a ser. Esta visão é provavelmente utópica, aquela seguramente nostálgica. Sérgio Buarque, também aqui, é mais difícil, porque tenta fundir, ao mesmo tempo, as duas visões, e descobrir no processo de formação as possibilidades de transformação.
A análise, de inspiração weberiana, mas, como mostrou Antonio Candido no prefácio, manejada com muita liberdade criativa, opera por tipos contrapostos: o ibérico e o saxônico, o espanhol e o português, o rural e o urbano, o semeador e o ladrilhador, o trabalho e a aventura. O procedimento dicotômico na reconstituição de nossa formação social vai se revelando, no decurso do texto, (capítulos 1 a 4), uma estratégia particularmente eficaz para a montagem do perfil do ``homem cordial", categoria que, com rara felicidade, procura apanhar as estruturas mais íntimas de nosso modo de ser. E por aí vemos como Sérgio Buarque de Holanda entrosa-se com a melhor tradição do pensamento social latino-americano, que sempre enfatizou os contrastes, a exemplo de Sarmiento e Euclides da Cunha; mas, ao mesmo tempo, avança na mesma senda, pois não se limita ao contraponto, mas ultrapassa o dilema, buscando dialeticamente a síntese dos contrários.
No andamento de sua análise, a configuração do ``homem cordial" (capítulo 5) marca esse momento de superação, e ao mesmo tempo um ponto de inflexão no seu discurso: de uma análise do processo formativo, orienta-se agora para uma prospecção das possibilidades de mudança inscritas nesse mesmo processo. E os dois últimos capítulos (6 e 7) assumem outro andamento; não mais contrapontos para a definição de um tipo ideal, mas a sequência de indagações que vão se abrindo em leque, na medida em que cada resposta é, ao mesmo tempo, uma nova interrogação. Os dois capítulos finais podem efetivamente realizar essa audaciosa prospecção, dada exatamente a reconstituição ``compreensiva" efetuada na primeira parte: o ``homem cordial" ficará sempre como referencial para indagar os caminhos ou descaminhos de nossa modernização, criticar a vulgata liberal e ao mesmo tempo apontar os riscos de soluções extremadas à direita ou à esquerda. E a conclusão, que fica insinuada, mas não explicitamente formulada, não pode ser mais pessimista: ou nos modernizamos, e deixamos de ser o que somos; ou nos mantemos como somos, e não nos modernizamos.
Assim, podemos compreender, finalmente, a extraordinária fortuna crítica dessa obra clássica: sua atualidade decorre exatamente do fato de que esses processos estão em curso, e esses dilemas ainda persistem. Parece que o Homem Cordial ainda respira, apesar de Sérgio Buarque ter encerrado a polêmica com Cassiano Ricardo dizendo, melancolicamente, que receava já ter ``gasto muita cera com esse pobre defunto".

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