São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Dragões, borboletas e Brasis

NICOLAU SEVCENKO

Os outros dois livros comentados aqui mantêm uma oblíqua correspondência entre si. A obra dos professores Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro reúne imagens que artistas e visitantes estrangeiros legaram dos negros escravos. O livro do professor Claude Lévi-Strauss apresenta uma seleção das fotos feitas na sua primeira visita ao Brasil, em 1935, sobretudo de grupos indígenas. Em ambos os trabalhos, o tema é basicamente o mesmo: opressão, violência e desintegração sócio-cultural. Se é possível, de modo figurado, falar em paisagem humana, esses dois livros proporcionam um viés através do qual se pode avaliar o estilo peculiar de relação que a condição colonial estabeleceu, entre o conquistador e a natureza, nesta e em outras partes do mundo. Há mais vicissitudes no nebuloso vão entre civilização e colonialismo, do que pode presumir o mais mirabolante paisagismo barroco ou romântico. E no entanto, não há como a documentação iconográfica, imagens enfim, para revelar as sutilezas cruas com que a tirania aflige as criaturas e que as palavras e os discursos foram justamente feitos para calar.
O ato inaugural da expansão colonial moderna foi a conquista das Ilhas Canárias pelos espanhóis. Não poderia haver anúncio mais completo e revelador da catástrofe que estava por vir. Para ocupar as ilhas, os invasores exterminaram até o último de seus habitantes, os canarinos, povo original em todos os aspectos e sobre cuja existência não restam os mais remotos indícios. Depois, havia o problema da exuberante vegetação local. Era descrita como paradisíaca, mas não se podia ainda, naquele tempo, vender essa impressão. Os espanhóis decidiram plantar cana ali. Ato contínuo, queimaram toda a vegetação, também completamente original, num único e gigantesco incêndio. Diante do deserto calcinado, passaram a importar escravos negros para plantar os canaviais. E as ilhas desafortunadas readquiriram então uma população e uma paisagem. ``Sugar-cane fields forever", como Caetano crismou o paraíso colonial.
A crítica das relações espúrias entabuladas entre os colonizadores, as populações nativas e as terras ocupadas, foi instilada no Brasil por uma linhagem nobre de intelectuais, encabeçada por Euclides da Cunha, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Através de seus estudos se pode vislumbrar a percepção da paisagem pelo viés do colonizador. Assentados os pés na terra firme, após ter acompanhado a partida da frota para o mar alto, ele dá meia-volta e se depara com a massa verde inexpugnável à sua frente, sabendo que agora não há mais retorno. A partir daquele momento, o verde se torna a cor da ameaça. É dele que vêm os índios hostis, feras, insetos, doenças. É ele que impede a vista de localizar riquezas fáceis de explorar. É ele que ocupa o lugar destinado aos canaviais. É ele que oculta e protege a população cujo destino é servir. O alívio vem com o sinal vermelho: fogo nas matas, para abrir o horizonte até onde o olho alcance, e quando se chegar lá, fogo outra vez.
Paisagem, portanto, foi por muito tempo um conceito estreitamente ligado a uma perspectiva européia. Do ponto de vista do colonizador o que havia eram matas, feras e gente brava, devendo pois ser des-bravadas. Sua relação com o mundo natural era agressiva, brutal, sádica, não contemplativa. O louvor à majestade da selva tropical é um mito literário do Romantismo. Quando os modernistas reviveram o indianismo e lançaram a Antropofagia, as últimas florestas do estado de São Paulo ardiam e os últimos índios eram exterminados pelos mesmos patronos que financiavam os poetas e pintores. E, como diz o provérbio chinês, pela consideração que um homem tiver por uma borboleta, se pode saber o apreço que ele tem pelos seus iguais.
Virou moda e, como se sabe, muitos europeus no século 19 faziam coleções de borboletas exóticas, matando-as com fenol e espetando-as na devida posição num mostruário ricamente emoldurado. Era um modo de gostar das borboletas. Outros vinham ao Brasil e desenhavam, pintavam ou fotografavam negros. Daí que, o que se vê retratado na notável coleção de imagens, reunida pelos esforços dos professores Kossoy e Tucci Carneiro, não é a instituição da escravidão, mórbida e crucial dentre todas no processo colonizador, mas a exterioridade do negro escravizado, três vezes estranha ao olhar europeu: por estar fora de seu contexto étnico, por estar fora de seu contexto cultural e por estar fora da condição humana. Nesse sentido também as imagens são um pouco como as ilustrações de Gustave Doré para o poema de Dante, permitem matar a curiosidade sobre como é o inferno, sem ter que sentir o fogo na própria carne. Dizia-se que não há pecado ao sul do Equador, lá então toda barbárie será perdoada e nada do que se viu será cobrado no Juízo. Um mundo onde definitivamente a imagem se libertou da ética e se pôs a voar como uma borboleta rara.
O belo livro do professor Lévi-Strauss é de um gabarito completamente diferente. Ele não apresenta espécies nem ícones topológicos. Não é uma coleção de imagens para comprazer o olhar curioso ou compor uma catalogação. São fotos íntimas, que ele tirou para si mesmo, de pessoas, não categorias, com quem ele conviveu, que ele de algum modo conheceu e com quem trocou manifestações de reconhecimento e afeto. Ele próprio lamenta que essas imagens já não lhe possam resgatar suficientemente as gentes, as circunstâncias e emoções concretas vividas em conjunto. Daí o título do livro. Aliás, há mais no título do que só isso. Essas saudades são do Brasil que ele conheceu, por certo, mas também de um Brasil que ninguém conhece, que desapareceu para sempre sem quase deixar rastros e que as fotos do professor Lévi-Strauss evocam com o desamparo de imagens incapazes de surtir eco.
Duas imagens em especial, entre tantas sensíveis, me tocaram fundo. Em Pirapora do Bom Jesus, numa festa religiosa, ele flagra uma linda menina negra vestida de anjo, com túnica branca, um diadema com uma estrela na testa e longas asas emplumadas, vagueando distraída pela feira anexa. O detalhe interessante que certamente não lhe escapou: todos ao redor olham para o fotógrafo, não para o modelo. Acostumados a conviver com anjos, é o etnólogo francês que lhes causa espanto. Outra, na capa, o jovem nambiquara, sorrindo das atenções do fotógrafo, na sóbria elegância da pena que lhe atravessa o septo nasal, brincos de madrepérola e o labrete de vareta de bambu que lhe sobe acima da cabeça, como um chifre longo e fino. Tal como um sublime unicórnio em seu jardim.

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