São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Dicionário claro e distinto

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Dicionário Descartes
John Cottingham
Tradução: Helena Martins
Jorge Zahar Editor, 171 págs.
R$ 17,00

Qualquer sistema filosófico se define também como uma linguagem articulada. Isto significa que, num conjunto terminológico que pretenda expressar um pensamento de vocação totalizadora, a compreensão lexical não se separa dos cruzamentos semânticos que constituem a rede de matrizes significativas, condição de possibilidade da própria inteligibilidade do sistema. E isto não apenas no que se refere aos limites que circunscrevem os textos como campo definido de expressão, mas, também, e de maneira igualmente relevante, naquilo que diz respeito à gênese do sentido filosófico a partir da incorporação da herança histórica, por mais transfigurada que esta apareça num pensamento de perfil inaugural, como é o caso da filosofia cartesiana.
A estrutura da articulação e a gênese histórica da significação são problemas especialmente difíceis quando se trata da terminologia cartesiana. A complexidade da posição de Descartes na história do pensamento exige, para que a compreendamos na sua excepcional coerência, que se faça justiça, de um lado, à profunda ruptura na linhagem da cultura filosófica representada pela inversão dos pólos constituintes do processo de conhecimento e, de outro, à continuidade inscrita no núcleo básico de um projeto que pretende reencontrar o mundo pelo caminho da subjetividade entendida como fundamento representativo. Estas duas questões definem, ao mesmo tempo, a enorme distância que a atitude cartesiana toma da tradição e a proximidade do instrumental terminológico de que o filósofo se vale para construir a sua originalidade. Ambas foram magistralmente postas em equilíbrio no léxico escolástico-cartesiano elaborado por Gilson.
Tais dificuldades estão igualmente presentes num estudo que dispense o viés comparativo e se restrinja à elucidação terminológica no interior do sistema filosófico de Descartes, como é o caso deste ``Dicionário" elaborado por John Cottingham. Mesmo porque a singularidade da inserção cartesiana na história da filosofia torna necessária a compatibilidade entre as três perspectivas mencionadas: sentido específico, articulação sistemática e gênese histórica. Tais características estão presentes nos verbetes e conferem ao texto a pertinência que o torna um instrumento de grande utilidade para os estudiosos de Descartes.
A originalidade terminológica de Descartes não corresponde à profundidade das mudanças que introduziu na filosofia. Daí a aparente facilidade com que nos deparamos à primeira leitura de seus textos, e que decorre da ausência de termos técnicos, sobretudo quando comparamos seus escritos com os da escolástica tardia. Esta característica aumenta a dificuldade de elucidação de seu vocabulário, em que palavras da linguagem comum por vezes encobrem significados extremamente complexos. O ``Dicionário" de Cottingham consegue chegar a uma determinação rigorosa no nível da significação específica, tratando os vários termos num horizonte sistemático amplo, em que a variedade das ocorrências contribui para fazer ressaltar a unidade semântica.
Esta contextualização sistemática é enriquecida pelas remissões históricas, algo absolutamente essencial quando se trata de Descartes, cujo débito com a terminologia tradicional é amplamente reconhecido pelos estudiosos. Econômicas e precisas, as referências ao aristotelismo tomista, a certos aspectos do agostinismo e à escolástica contemporânea a Descartes, Suarez ou Eustáquio, sempre acompanhadas de comentários pertinentes acerca da singularidade da apropriação cartesiana, permitem uma compreensão equilibrada da presença da tradição no pensamento de Descartes. Em vários verbetes nota-se esta associação do tratamento temático ao caráter histórico, cruzamento que facilita a compreensão tanto da gênese quanto do aspecto crítico da filosofia cartesiana.
O caráter inaugural da metafísica fundadora do pensamento moderno exige que se atente também para a mudança de significado de termos genéricos e comuns na história da filosofia e mesmo na linguagem cotidiana, tais como conhecimento, paixão, imaginação e outros igualmente correntes. Nestes casos, o tratamento comparativo e a elucidação das ocorrências sistemáticas contribuem sobremaneira para o esclarecimento do sentido novo, que Descartes raramente cuida de definir. Como a originalidade do filósofo provoca o aparecimento não só de novos sentidos mas também de novos problemas, sobre os quais a recepção do cartesianismo se debruça há séculos, vem muito a propósito a introdução no inventário lexical de expressões que tradicionalmente definem ou descrevem tais questões, como por exemplo a expressão ``círculo cartesiano", que constitui capítulo obrigatório nos comentários acerca da relação entre o cogito e a garantia divina da representação evidente. Trata-se de uma opção que alarga o horizonte teórico do projeto lexicográfico, com a remissão a temas e problemas, sem a menção dos quais não se faria completa justiça à amplitude da interrogação cartesiana.
Cabe destacar também que este ``Dicionário", coerentemente com uma de suas finalidades que é o apoio àqueles que se iniciam no estudo de Descartes, traz verbetes relativos aos títulos das obras do filósofo, com indicações histórico-bibliográficas e apreciações objetivas sobre o conteúdo, bem como referências às circunstâncias de composição dos textos, recurso certamente útil a quem precise situar-se com segurança mínima no limiar da tarefa de estudos mais aprofundados.
Trata-se, enfim, de uma obra que supera as dificuldades imensas inerentes ao gênero. Com efeito, a organização de dicionários de filosofia é empreendimento ousado, e são excepcionais os casos em que os resultados podem ser dados como satisfatórios, sobretudo quando se pretende recobrir a filosofia e não apenas uma filosofia. Também por este motivo há que se louvar a escolha de um aparato lexical restrito a uma filosofia, a um único autor, o que certamente diminui o risco de generalidade e de imprecisão, inclusive porque nestes casos a tarefa pode ser entregue a especialistas, como é o caso deste dicionário e de outros que se anunciam na mesma coleção. Não há dúvida de que este formato é o que melhor se adequa às exigências de precisão e rigor pelas quais se devem pautar a elaboração de tais instrumentos de trabalho.

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