São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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O moderno e o arcaico

J. SERGIO LEITE LOPES

O Poder do Atraso - Ensaios de Sociologia da História Lenta
José de Souza Martins
Hucitec, 174 págs.
R$ 15,00

Na contracorrente de análises apressadas, as quais, presas a concepções evolucionistas e etnocêntricas, menosprezam a importância da transformação das relações sociais no campo, Souza Martins demonstra, em ``O Poder do Atraso", como a questão agrária continua fundamental na problematização da cidadania brasileira. Permanecendo no centro histórico de um sistema político persistente baseado no clientelismo, os grandes detentores da propriedade da terra, associados aos gerenciadores do capital moderno, deram a esse sistema político uma força renovada, que bloqueia a constituição tanto de uma sociedade civil democrática quanto da cidadania plena de seus membros.
Essas afirmações são desenvolvidas e argumentadas ao longo dos quatro ensaios que compõem o livro, ensaios estes precedidos por uma pequena introdução que os contextualiza. Os dois primeiros capítulos, ``Clientelismo e Corrupção no Brasil Contemporâneo" e ``A Aliança Entre Capital e Propriedade da Terra no Brasil: a Aliança do Atraso", foram apresentados em simpósios na Universidade de Londres, no ano acadêmico 1993/94, período em que Souza Martins exercia a cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge.
No primeiro capítulo, Martins mostra como os episódios do impeachment de Collor e a ``CPI do orçamento" chamam atenção para a continuidade, na história brasileira, de práticas clientelistas e de indistinção entre público e privado, apesar de agora terem sido algumas dessas práticas episodicamente questionadas. Ele mostra, ao longo deste ensaio, como desde a proclamação da República a dominação patrimonial no Brasil não é antagônica à face burocrática e racional-legal desta mesma dominação política.
Sabendo servir-se com maestria das instituições da moderna dominação política, as oligarquias brasileiras acabam controlando todo o aparelho de Estado, desde o início do século até o regime militar de 1964 e até os governos da ``Nova República". A tal ponto que o autor pode afirmar que ``nenhum grupo ou partido político tem hoje condições de governar o Brasil senão através de alianças com esses grupos tradicionais, e, portanto, sem amplas concessões às necessidades do clientelismo político" (pág. 20). E ainda (pág. 29): ``Na sociedade brasileira, as transformações sociais e políticas são lentas, não se baseiam em acentuadas e súbitas rupturas sociais, culturais, econômicas e institucionais; o novo surge sempre como um desdobramento do velho".(...) ``Nessa dinâmica é que pode ser encontrada a explicação para o fato de que são os setores modernos e de ponta, na economia e na sociedade, que recriam ou, mesmo, criam, relações sociais arcaicas ou atrasadas, como a peonagem, a escravidão por dívida, nos anos recentes" (a respeito dessas novas relações arcaicas, cf. também Neide Esterci, ``Escravos da Desigualdade", 1994).
Ao detalhar, no segundo capítulo, ``a intervenção militar na questão agrária", Martins prossegue esse raciocínio, mostrando a ironia do fato de que o governo militar advindo do golpe apoiado pelos grandes proprietários, já em 1965 tenha feito aprovar, por um Congresso depurado e sobre-representado por proprietários rurais, o Estatuto da Terra, estabelecendo limites para o tamanho e uso das propriedades. Esse é mais um episódio paradoxal da história brasileira, que tem se repetido: enquanto os grupos transformadores propõem reformas sociais, são os grupos inimigos, conservadores, que, vencedores, acabam executando as reformas. Anteriormente, a abolição da escravatura havia sido proposta por abolicionistas e liberais, mas posta em prática pelos conservadores; a proclamação da República, proposta pelos radicais da época e consumada, contra eles, pelos militares. Esse jogo político objetivo, envolvendo uma correlação de forças desfavorável às transformações projetadas, acaba resultando no modo contido como as reformas sociais e políticas são concretizadas no Brasil (págs. 69-70).
Martins mostra, também, que mesmo os governos centralizados, por vezes modernizantes ou anti-oligárquicos -que se alternaram durante este século com governos descentralizados, baseados no poder oligárquico local- persistiram no favorecimento à grande propriedade fundiária em detrimento do trabalhador rural. O fato de Getúlio Vargas, por exemplo, viabilizar e consolidar, em 1942, um código do trabalho para os trabalhadores urbanos, mas excluir simultaneamente dessa nova cidadania trabalhista os trabalhadores rurais, deixando intactas relações de trabalho baseadas em critérios de dependência pessoal, é altamente esclarecedor do pacto político tácito então estabelecido, e até hoje vigente com modificações, em que ``os proprietários de terra não dirigem o governo, mas não são por ele contrariados"(pág. 72).
Assim também o regime militar de 1964 acabou reforçando politicamente a irracionalidade da propriedade fundiária no desenvolvimento capitalista, através de sua política de incentivos fiscais a grandes empresas que investissem em terras nas áreas de fronteira agrícola. Com isso, o regime militar deixou o legado do comprometimento dos grandes capitalistas com a propriedade fundiária, não mais através de meras alianças políticas, como antes de 1964, mas agora através de uma substantiva aliança social e econômica.
À análise da persistência renovada do poder conservador da aliança da propriedade da terra com o capital moderno, Martins acrescenta formulações por vezes pessimistas em relação aos movimentos sociais que se opõem a esse ``poder do atraso". Ao relativizar o dinamismo político dos novos movimentos de cidadania (cf. págs 13-14 e pág. 21); ao declarar a fraqueza política da classe operária brasileira ao longo de sua história (pág. 31); ao apontar os limites e equívocos táticos objetivos, por um lado, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, por outro lado, dos funcionários e técnicos da reforma agrária no primeiro governo da ``Nova República" (págs. 150-152), formulações estas que podem suscitar requalificações, não estaria o autor minimizando a dinâmica e o alcance social dos movimentos e grupos sociais ``de baixo", o que paradoxalmente poderia vir a reforçar a impressão do fatalismo do poder oligárquico no Brasil? Nas formulações citadas, um certo cansaço e desencantamento compreensíveis parecem tomar conta do autor, cujos melhores antídotos estão presentes em outros momentos da obra do próprio Martins.
No entanto, ele aponta para duas categorias de agentes eficientes na promoção da transformação social e política no interior desse contexto de ``poder do atraso". A primeira delas, assinalada na finalização do primeiro capítulo, é representada pela nova geração de ``funcionários públicos de perfil weberiano", servidores do Estado e não do governo, grande parte dos quais tendo passado pelas universidades e pelas regras de seleção por concurso público. A mediação desse tipo de funcionários tem sido decisiva na qualificação de denúncias de corrupção e outros desvios éticos dos governantes e de particulares favorecidos. Ou, ainda, no combate ao crime, ou no combate à superexploração no trabalho.
A outra categoria de promotores eficazes da transformação social assinalados por Martins é a representada pelos agentes pastorais da maior parte da Igreja católica, instituição esta que está no centro das análises do autor na segunda parte do livro, na sua transformação de instituição da tradição conservadora em agente mediador da associatividade de trabalhadores. No terceiro capítulo, o autor desenvolve uma das mais importantes análises sintéticas da história da Igreja católica do ponto de vista das contradições sociais em que sua ação se insere e da constituição de sua relação com os pobres do campo, chegando até os últimos 20 anos quando ``a experiência pastoral nas adversidades da Amazônia foi decisiva para o compromisso da Igreja com índios, camponeses e trabalhadores rurais" (1)
Trabalhando com desenvoltura sobre as lutas camponesas desde os anos 50, do Paraná ou do Nordeste até os conflitos dos anos 70 e 80 na Amazônia, Martins, nessa segunda parte de seu livro, passa-nos menos a impressão de uma sociologia da história lenta que ele procurou caracterizar quanto à macro-história das relações de dominação política entre as classes no Brasil. A riqueza mesma, aliás, dessas análises de Souza Martins sugerem uma discussão mais aprofundada dessa noção por ele proposta rapidamente na introdução, seja levando-se em conta os debates entre os antropólogos desde a oposição entre sociedades de história ``fria" ou ``quente" de Lévi-Strauss até a história estrutural de Sahlins, ou os debates entre as diferentes gerações dos historiadores da ``escola dos Annales", ou ainda a compatibilização com os brilhantes trabalhos do próprio Martins sobre história da vida cotidiana, como o livro ``Subúrbio" (1992) ou o artigo ``O Diabo na Fábrica", que se assemelham às propostas dos praticantes da história cultural ou da chamada micro-história.
``O Poder do Atraso" contém, assim, ensaios dos mais estimulantes dentre os produzidos recentemente. O livro vem valorizar a vertente política e de sociologia rural do autor de ``O Cativeiro da Terra" (1978) e de ``Os Camponeses e a Política no Brasil" (1981), dentre a sua já vasta e diversificada obra, que vem desde ``O Conde Matarazzo" (1967) até ``A Chegada do Estranho" (1993), uma das mais importantes no panorama atual das ciências sociais brasileiras.

(1) Para a influência da Igreja junto a outros grupos de trabalhadores, cf. monografias recentes como a de Regina Novaes, ``De Corpo e Alma"; ``Catolicismo e Conflitos Sociais no Campo", 1988, quanto aos trabalhadores rurais no Nordeste, e a de Heloísa Martins, ``Igreja e Movimento Operário no ABC (1954-1975)", 1994)

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