São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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A física prometéica

ALBERTO LUIZ DA ROCHA BARROS

A matéria roubada: a apropriação crítica do objeto da física contemporânea
Michel Paty
Tradução: Mary Amazonas Leite de Barros
Edusp, 320 págs.
R$ 30,60

A começar pelo título do livro, já se explicita a linha básica do pensamento do autor, que é pesquisador da física das partículas elementares e trabalha há vários anos em problemas de filosofia e história das ciências em geral. Tal como no mito de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses do Olimpo para entregá-lo aos homens, a matéria é roubada pelo pensamento conceitual (Prometeu) do real (os deuses). O conhecimento deste real é um combate onde tudo sempre recomeça, pois o real preexistente é inesgotável e esta perpétua aquisição aparece como uma dialética. E aí aparece a epistemologia de Paty como um realismo científico, racional e crítico de inspiração einsteiniana. É, ainda, o próprio autor quem afirma: ``o programa epistemológico aqui adotado é o do realismo racional e crítico que coloca, como todo realismo, a existência de um real em si, exterior ao pensamento e anterior a ele; (...) não podemos esperar uma superposição exata entre o real e sua representação simbólica: e é por isso que o aspecto crítico desse realismo racional se impõe como o requerido para polir, para modificar os elementos, inclusive fundamentais, dessa representação." (pág. 46)
É também explicitado que o realismo se mostra mais apropriado que o materialismo, pois o realismo é um ponto de vista sobre o conhecimento e seu objeto, enquanto o materialismo é um ponto de vista sobre o mundo, referindo-se este a uma filosofia monista da matéria e do pensamento. Marx, na sua ``Introdução à Crítica da Economia Política", observa que ``o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto é para o pensamento apenas a maneira de se apropriar do concreto, de reproduzi-lo sob a forma de um concreto pensado". Na física, a abstração é feita pela matemática e a garantia de que ela reflete adequadamente o mundo exterior é assegurada pela possibilidade de predições. Paty observa que os objetos físicos assim construídos pela abstração têm o direito à denominação de ``abstratos-concretos". Deste modo, toda produção do conhecimento científico é apropriação da matéria pelo pensamento, no quadro e por intermédio de um conjunto de formas teóricas, mas também filosóficas, ideológicas e sociais dadas.
Ao falar sobre as crises surgidas na reavaliação do conhecimento científico, mais particularmente sobre a crise do determinismo que se seguiu à revolução quântica, Paty afirma que a crise é mais profunda e é relativa às nossas representações da realidade. E este problema da representação é o tema principal do livro. Os objetos da física quântica escapam da nossa experiência cotidiana e da percepção intuitiva, colocando assim em dramática discussão a influência do observador e a noção de realidade independente deste.
O livro faz uma análise crítica do empirismo em vários momentos, lembrando as discussões de Bohr e da escola de Copenhague, com Einstein. O par observador-observado é inseparável na física quântica, segundo Heisenberg, e ``o que observamos não é a natureza em si, mas a natureza exposta a nosso método de investigação". A descrição de um sistema quântico, feita probabilisticamente, não é uma qualidade objetiva, pois contém referência ao conhecimento do observador. Como afirma Pauli, ``é preciso abandonar a possibilidade de tratar os fenômenos físicos objetivamente, isto é, abandonar as descrições espaço-temporais e causais clássicas da natureza, que repousam essencialmente em nossa capacidade de separar de maneira única o observador e o observado". Deste modo, a objetividade na física é substituída pela intersubjetividade. Paty observa que Bohr abranda esta concepção operacionalista ao introduzir o princípio de complementaridade que compensa a exclusão mútua de dois pontos de vista contraditórios, devido à aparelhagem de observação. Por exemplo, no caso do dualismo onda-partícula, apenas um aspecto -ou onda ou partícula- está presente de cada vez: os aspectos não são simultâneos mas sim sucessivos.
Grande entusiasta da obra de Bohr, Léon Rosenfeld vê na lógica da complementaridade uma convergência com o materialismo dialético e dá uma explicação materialista do uso, sempre necessário, das concepções clássicas: os órgãos dos sentidos, a bioquímica do cérebro humano, a evolução biológica, enfim, fazem com que a observação e o pensamento só possam manisfestar-se em organismos macroscópicos. Para ele, a lógica da complementaridade resulta necessariamente da evolução biológica. Parece, assim, que a síntese exigida pela lógica dialética revela-se como o movimento expresso pelo caráter sucessivo e não-simultâneo do princípio de complementaridade.
Einstein, em 1935, fez uma contraproposta à complementaridade, com seus colaboradores Podolsky e Rosen, conhecida como paradoxo EPR. Einstein propunha o seguinte critério: ``Se, sem perturbar de modo algum um sistema, for possível prever com certeza o valor de uma grandeza física pertencente a este sistema, então existe um elemento de realidade física correspondente a esta grandeza". A mecânica quântica afirma que se tomarmos a velocidade de uma partícula como elemento de realidade física, então a posição da partícula não poderá ser obtida com certeza, e assim não seria um elemento de realidade física. Segundo a concepção da Escola de Copenhague, grandezas conjugadas não podem ser conhecidas simultaneamente em virtude da perturbação provocada pela observação (medida). Para Einstein, a mecânica quântica não seria uma teoria completa, pois todo elemento de realidade física deve ter uma contrapartida na teoria física. A seu ver, esta teoria era demasiado empírica e insuficientemente racional.
Para superar este impasse na física, Paty propõe dissociar o programa realista de suas formas rígidas e procurar caminhos conceituais teóricos novos, modificar as noções clássicas de determinismo e causalidade. O determinismo será a necessidade de que os fenômenos sejam explicados por leis e por teorias que levem em conta tais leis, e a causalidade será a exigência que um efeito seja reduzido a uma causa. Esse determinismo e essa causalidade se expressam por noções resultantes do próprio formalismo da teoria quântica, como vetores de estado, operadores, matrizes, relações de comutação etc.
Nessa problemática, há um interesse muito especial pela física das partículas elementares, que estão ao mesmo tempo muito próximas e muito distantes de nós. Muito próximas porque representam a essência da matéria que é o objetivo mais concreto possível. Mas, também, estão muito distantes, pois escapam de uma descrição intuitiva baseada em objetos de nossa percepção familiar, e só podem ser caracterizadas com a ajuda de conceitos matemáticos altamente abstratos, sem equivalentes em nossa escala macrofísica. Chegou-se a afirmar que na física contemporânea a substância se apagava e se tornava função. No entanto, Paty observa que a realidade não é o conceito nem é esgotada por sua formulação matemática, e que, portanto, a teoria não é superponível ao objeto real. Assim sendo, há sempre a busca de uma melhor representação da realidade física, ou seja, uma evolução dos conceitos e dos objetos lógicos. Para exemplificar isto, usa-se a passagem da mecânica quântica para a eletrodinâmica quântica. Neste exemplo, vê-se que o objeto da nova teoria difere do objeto da antiga não apenas por acréscimo, e que há uma contradição entre eles: o novo vai comportar ao mesmo tempo o velho. Para passar do antigo ao novo objeto, mantendo-se a exigência de uma teoria coerente, o simples raciocínio lógico não basta; o avanço do objeto antigo ao novo é um movimento que se pode denominar de dialético, dado ao aspecto contraditório que ele encerra.
A leitura do livro exige um certo esforço e o próprio autor, na apresentação, sugere vários roteiros para lê-lo conforme o interesse e a formação intelectual do leitor, se este é homem da ciência ou da filosofia.
Na edição brasileira, as notas envolvendo detalhes ficam ao pé da página e desse modo tornam mais fácil ao leitor sua interação com o texto, do que na edição francesa que as remete para o fim de cada capítulo.
O prefácio é do conhecido filósofo da ciência italiano Ludovico Geymonat. O livro contém uma excelente bibliografia e, além do mais, índices por assuntos e por nomes.

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