São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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A psicologia no espelho

<UN->RENATO MEZAN

A psicologia no espelho
RENATO MEZAN

Revisitando as Psicologias
Luis Cláudio Figueiredo
Vozes/EDUC, 97 págs.
R$ 11,00

Os cinco ensaios aqui reunidos se situam num espaço intermediário entre as duas linhas de investigação a que vem se dedicando o autor. Na primeira, o interesse é reconstruir os processos sociais e psicológicos que moldam a experiência subjetiva em diferentes momentos históricos; na segunda, busca-se discenir de que forma as diversas correntes da psicologia se distribuem no "espaço psicológico" aberto por aqueles processos de constituição da subjetividade. É neste "espaço psicológico" -produzido por fatores sociais e ocupado pelas doutrinas da psicologia- que se recortam as questões abordadas neste pequeno mas importante livro.
A tese de Luis Cláudio é que o psicológico se constitui sob a égide de um projeto epistemológico no qual não tem cabida a matematização do sujeito iniciada com Descartes, cujo objetivo era apresentar um sujeito livre de toda escória de singularidade, entendida como fonte de erro e parcialidade na compreensão científica do mundo. Mas é precisamente esta singularidade que constitui o próprio da psicologia, enquanto saber sobre a experiência que o sujeito tem de si: de onde um "desencontro radical" entre o projeto epistemológico moderno e os saberes psicológicos e sociológicos que se constroem nas suas margens ou nas suas entrelinhas (pág. 21).
De onde também um inútil e pernicioso esforço destes saberes para se adequarem aos cânones da cientificidade definidos por aquele projeto: a esta espécie de masoquismo que se compraz na condenação de si pelos tribunais da epistemologia, no exato momento em que vacilam as certezas sobre as quais se erigia o projeto epistemológico de construir um sujeito asséptico e expurgado dos vícios da carne, Luis Cláudio reserva o epíteto sarcástico de "martirizante lavapés", sugerindo que cabe à psicologia (no caso representada pela psicanálise) "contrapor sua compreensão da subjetividade que impregnam em maior ou menor medida os pensamentos epistemológicos" (pág. 22).
Esta mesma postura o conduz a deslocar o foco de suas indagações daquilo que costuma ser uma discussão tão estéril quanto inócua: a da maior ou menor "cientificidade" dos discursos psicológicos, cientificidade sempre medida por um critério que ignora o cerne mesmo do objeto que pretende avaliar -a saber, que o campo do psicológico é constituído pelas dimensões da subjetividade excluídas a priori pela intenção de purificar o sujeito e torná-lo compatível com o projeto epistemológico dominante.
Como pretende evitar tanto o reducionismo psicologista quanto o reducionismo historicista, o trabalho de esclarecimento conceitual necessita manter juntos os diversos fios de uma trama constantemente em risco de se esgarçar. As metáforas da "ponte" e do "trânsito" servem, em sua estratégia, para aproximar, sem confundir, planos que correm o perigo de se autonomizar, num movimento centrífugo , ou de se dissolverem, no movimento oposto. É o caso das teorias e de seus lugares de emergência, como também, no quinto ensaio, o da relação entre a teoria e a prática na clínica, ou, no quarto, da temática da inter e da transdisciplinaridade. A imagem é apta a sugerir o espaço necessário entre margens que precisam ser ligadas sem por isto perder sua posição em lados opostos do rio; ela é contrabalançada por uma outra metáfora, a da tensão, que aparece igualmente em pontos decisivos do argumento.
Um exemplo, entre outros, é a discussão das relações entre teoria e prática no quinto ensaio, "Teorias e Práticas na Psicologia Clínica". Aqui o velho tema da aplicação da teoria na prática versus a transformação da prática em teoria se vê deslocado em favor de uma descrição que enfatiza a irredutibilidade dos dois territórios -nem a prática é inteiramente teorizável, nem a teoria inteiramente conversível em prática-, irredutibilidade que ressalta ainda mais a necessidade do trânsito, da ponte entre elas. O que confere interesse especial à discussão deste quinto ensaio é a tese de que a teoria, além de poder funcionar como instrumento de configuração dos fenômenos (um pouco como os esquemas da imaginação trancendental de Kant, que servem para vincular o diverso intuído pela sensibilidade aos conceitos do entendimento puro), deve e pode ter o papel de criticar a prática, nela introduzindo um tempo de questionamento e uma possibilidade de encontro com o novo.
Deslocar esta função do seu "locus" habitual -a intuição, a empatia, a sensibilidade do terapeuta- não é um dos méritos menores deste texto. Ele revela também as preocupações do professor com a carência, no currículo das escolas de psicologia, de disciplinas que favoreçam a aquisição da capacidade de escrever uma história clínica -exatamente o tipo de dispositivo representacional mais adequado para manter um "nível ótimo de tensão" entre a não-coincidência da teoria e da prática e a necessária pertinência de uma à outra (págs. 93 e 94 em especial).
O interesse de Luís Cláudio pelas teorias psicológicas é menos de ordem epistemológica do que de ordem ética. Uma das ousadias deste livro, em especial no terceiro ensaio, é sugerir critérios para uma avaliação ética das teorias e práticas da psicologia, especialmente na clínica: "é melhor uma teoria que teorize a cisão do que uma que nos mantenha na ilusão da unidade do sujeito (...), é melhor uma teoria (...) que propicie o trânsito, ao invés de uma que se estabeleça rigidamente num dos lugares disponíveis (...)" (pág. 33, grifos do autor). Ou seja, o critério de avaliação é portanto a forma pela qual a teoria, e a prática para a qual ela é pertinente, contribuem para a desmontagem das ilusões narcísicas fomentadas pelos diversos pólos organizadores da subjetivação.
É neste ponto que o pensamento de Luís Cláudio se mostra tibutário da tradição marxista na qual se formou; ainda que este marxismo seja refinado e elegante -não se esperem da sua pena grosserias sobre o reflexo da infra-estrutura na superestrutura-, é dele que provém o príncipio de inteligibilidade de toda a sua construção: a psicologia tem matrizes e estas matrizes são sociais, num sentido amplo e ao mesmo tempo preciso. A determinação é orientada do social para o representacional e não inversamente, mesmo que a perícia dialética e o senso crítico do autor estejam constantemente em ação para evitar os reducionismos que, de tão frequentes na sua família intelectual de origem, acabaram quase por desmoralizá-la.
Pois bem, esta raiz no marxismo combina-se com a atração pelo pragmatismo de autores como Rorty, Goodman e Dewey e pelas concepções de Wittgenstein e Heidegger. O autor, sabiamente, nos previne de que não é possível nenhuma síntese fácil entre os componentes deste grupo aparentemente heteróclito -mas os reune sob a égide de um "movimento multifacetado (...) de superação da hegemonia do pensamento representacional e da noção de verdade por adequação ou correspondência" (pág. 25, grifos no original). O próprio deste movimento antimoderno, a cujas nuances internas está sem dúvida atento (págs. 25-26), é a tese de que as linguagens são o "meio universal da esperiência, na qual objetos e sujeitos se constituem -vindo a ser- e se encontram uns com outros" (págs. 26).
A idéia de que as linguagens são o meio universal da experiência conduz diretamente à idéia de uma eficácia constitutiva da fala, a qual confere a esta a sua dimensão ética; estamos portanto em pleno centro do argumento, e, com efeito, nas linhas seguintes da pág. 26, Figueiredo falará nas teorias psicológicas como "instalações do humano", não só como modos de representar o psicológico, mas igualmente como dispositivos aptos a "configurar e constituir tanto os homens como seus mundos -suas moradas, tanto os sujeitos como seus objetos, tanto as experiências sociais como as experiências privadas e 'subjetivas' de cada indivíduo" (grifo meu).
Coloca-se assim um curioso problema: numa vertente mais tradicional, o constituinte é o processo social -é a via tomada, por exemplo, em "A Invenção do Psicológico" e resumida no início da pág. 27; numa outra vertente, o constituinte são os jogos de linguagem, que inclusive configuram e conformam "as experiências sociais". Tudo se passa como se Luis Cláudio oscilasse entre uma concepção marxista e uma concepção construtivista -para dizer as coisas esquemática e simplificadamente- e procurasse temperar os riscos de reducionismo presentes em cada uma delas com o que considera verdadeiro e valioso na outra. Não creio que isto seja um defeito, nem lhe cobro uma decisão prematura e desnecessária; descrevo uma questão que, me parece, tem origem no que gostaria de denominar "o problema da representação".
Ao identificar "pensamento representacional" e "teoria da verdade como adequação", talvez Luis Cláudio esteja descartando de modo excessivamente rápido outras possibilidades de entendimento do que seja a representação. Esta não precisa necessariamente estar subordinada à metafisica cartesiana nem ao "projeto epistmológico" que nela se origina; na própria filosofia marxista, como em seu antecedente hegeliano, a representação não é a obra do sujeito epistemológico diante do objeto isolado, mas sedimentação de experiências coletivas e eventualmente conflitivas (pense-se no segundo volume da "Fenomenologia do Espírito" ou na teoria da ideologia tanto do jovem como do velho Marx).

Continua à pág. Esp.-17

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