São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Dossiê Schopenhauer

MARIA LUCIA CACCIOLA

Magazine Littéraire janeiro de 1995
R$ 9,00

A revista francesa ``Magazine Littéraire", de janeiro deste ano, traz um dossiê Schopenhauer, apresentando o filósofo como dono de ``uma linguagem clara e concisa", que rompe com o jargão universitário da época. Destaca ainda a sua ruptura com o idealismo pós-kantiano e a preocupação com a abordagem concreta da existência humana, e recomenda como salutar a leitura do filósofo ``em tempos marcados pelo retorno do niilismo".
Índice do que bem pode ser um ``revival" dos estudos schopenhaurianos na França, quase abandonados desde os anos 30 e retomados nos anos 80 e 90 com o trabalho de alguns especialistas, este dossiê apresenta ensaios sobre o ateísmo, a liberdade, o inconsciente, a sexualidade, a medicina, o estilo e as influências na filosofia e literatura. Complementa-se com traduções de inéditos em língua francesa, uma cronologia, uma bibliografia, além de um recenseamento e uma avaliação das traduções de suas obras, marcando a falta de uma edição crítica e assinalando a existência de vários textos do filósofo ainda por traduzir em francês.
Apesar de notar-se na maioria dos artigos a preocupação de introduzir à leitura do filósofo, eles exibem, tomados no seu conjunto, os temas mais interessantes do pensamento de Schopenhauer, pelo menos no que se refere a nós, seus leitores contemporâneos. Há, assim, a intenção de fazer com que o filósofo fale para nosso tempo, sem, no entanto, deslocá-lo de seu habitat histórico-filosófico.
Michel Piclin, autor do livro ``Schopenhauer ou le Tragédien de la Volonté" (1974), comparece com o artigo ``Pour Une Lecture du Monde", exibindo os parentescos entre a obra capital de Schopenhauer, ``O Mundo como Vontade e Representação" e o pensamento kantiano, estabelecendo as origens de seu pensamento no âmbito da filosofia crítica. Schopenhauer teria adotado a solução da estética transcendental de Kant, para quem espaço e tempo são idealidades sensíveis. Também no que se refere à crítica que Kant faz ao substancialismo do cogito cartesiano , admitindo o ``eu penso" apenas como ato da síntese, Schopenhauer se avizinha ``estimando que a dupla sujeito-objeto não tem nenhum valor ontológico: ambos aparecendo e desaparecendo juntos, sendo quase intercambiáveis; se tentamos voltar-nos para o nosso próprio sujeito pensante, só encontramos trevas e simulacro".
Piclin mostra, a seguir, como Schopenhauer modificou a herança kantiana para estabelecer sua própria visão: a intuição de meramente sensível transforma-se em intuição intelectual, uma vez que nela o entendimento já é ativo. Finalmente, deixando definitivamente o kantismo, Schopenhauer ``nos deixa entrever a coisa-em-si" apenas encoberta pelo véu do tempo ``por meio de uma percepção excepcional" que se dá no corpo. Piclin distingue, ainda, em Schopenhauer, a individuação, submetida como todos os outros fenômenos ao princípio de razão suficiente, e a individualidade correspondente ao caráter inteligível que, como núcleo intemporal da Vontade, é o lugar da liberdade. Assim, a individualidade ``mergulha suas raízes na coisa-em-si".
O já conhecido especialista em filosofia alemã, Alexis Philonenko, que publicou em 80, ``Schopenhauer: Une Philosophie de la Tragédie", aborda no seu artigo a questão da liberdade, que tem como ``divisa fundamental: o ato resulta da essência". Distingue de acordo com o filósofo, o indivíduo, preso ao determinismo, e a pessoa, que, como Vontade, é livre, o que corresponde à distinção já efetuada por Kant entre caráter empírico e inteligível. A pessoa de nada depende, sendo determinada apenas por si, enquanto o individuo ``está intrincado no nexo fenomenal". Se a existência, ou seja o indivíduo, está fundada na essência, na pessoa, esta idéia de liberdade opõe-se ao existencialismo de Sartre que afirma que ``a existência precede a essência".
Afastado de Sartre, mas próximo de Bergson, para quem, segundo o articulista, ``não somos exteriores à nossa liberdade, como a substância é exterior ao predicado, mas realmente interiores aos nossos atos". Enfim, aproxima-o de Tolstói, cuja teoria dos personagens se funda sobre uma filosofia do estilo, já desenvolvida por Schopenhauer como manifestação de um estilo único a partir da realização progressiva da essência. Assim, ``aquilo que chamamos de nossa liberdade seria a revelação de nosso ser".
No artigo ``Meurtrier de Dieu", Jean-Paul Férrand, aborda o ateísmo de Schopenhauer. Este exige que um ``voto de incredulidade" deva estar presente em toda filosofia que se quer interrogativa, já que a filosofia não deve ocupar-se da crença, mas do saber. Apesar da separação rígida entre teologia e filosofia, que proíbe a servidão desta última à fé, nota Férrand que, para o filósofo, religião e filosofia provêm do mesmo solo: ``a necessidade metafísica do homem". As religiões trazem, pois, uma verdade alegórica, constituindo-se em ``metafísicas do povo". Se elas se arvoram em verdades metafísicas, invadem o terreno próprio da filosofia, corrompendo, como foi o caso, quase toda filosofia ocidental com a crença em dogmas. Férrand alerta para o fato de que Schopenhauer recusou-se a aceitar a idéia de progresso como um substitutivo para a fé religiosa, tendo sido ``o primeiro a farejar nas filosofias da História, especialmente na de Hegel, os miasmas do providencialismo moribundo".
As afinidades eletivas entre Schopenhauer e Freud são exploradas no artigo ``Oedipe Philosophe", de Paul-Laurent Assoun, conhecido entre nós pelas suas obras ``Freud e os Filósofos" e ``Freud e Nietzsche", já traduzidas. Assoun lembra que o alerta de Schopenhauer sobre a importância da sexualidade foi reconhecido explicitamente por Freud. Ainda, a origem da loucura na perturbação da memória, o problema da morte antecipando a potência de Tanatos, a aporia entre felicidade e condição humana entrecruzam filosofia e psicanálise.
Jean-François Groulier, no artigo ``La Question du Style" ocupa-se de Schopenhauer como ``artista da língua", citando Nietzsche, que o considerava o maior prosador de seu tempo. A língua professoral, marcada pela anarquia na ordem semântica e gramatical, é objeto de crítica do filósofo, que teme que ``o excesso de abstrações e a inflação verbal na linguagem filosófica", cujos exemplos são Fichte ou Hegel, possam levar à destruição da língua alemã. É nas línguas latinas, em Baltasar Gracian ou em La Rochefoucauld, que ele vai buscar o seu modelo, tentando superar a falta de espírito (``Geistlosigkeit") da prosa alemã, sua contemporânea.

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