São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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A física de bacharel

MARILENA CHAUI

Respondo uma única vez ao professor Waldyr Rodrigues porque sua carta, apesar da comicidade da autopromoção e do bacharelismo estilístico, poderia dar ao leitor que ainda não leu o livro a impressão de haver levantado objeções sérias a ``Convite à Filosofia".
1. O livro não enuncia a lei da gravitação universal newtoniana (prova: não enuncia os três axiomas nem coloca o texto entre aspas), mas, como é evidente para quem lê todo o texto, as idéias subjacentes à sua formulação, isto é, idéias de lei natural, racionalidade, necessidade e universalidade como traços do pensamento ocidental. Todavia, é inacreditável a observação do prof. Waldyr, supondo que o fato da lei newtoniana considerar velocidade e tempo como instantâneos ou nulos, isto significaria que tais variáveis não entrariam em linha de conta nos cálculos. Entram exatamente desta maneira, isto é, como instantâneos e nulos, pois todo estudante do segundo grau sabe que os axiomas newtonianos: a) assumem tacitamente que as dimensões espaciais e os períodos temporais podem ser subdivididos indefinidamente e, por isso, as magnitudes associadas a eles podem ser cada vez menores até chegar ao nulo; b) pressupõem que velocidades e acelerações atribuídas aos ponto-massas são as que eles possuem no caso limite, quando os períodos temporais envolvidos se aproximam de zero e, por isso, os axiomas pressupõem velocidades e acelerações instantâneas para os ponto-massas.
2. ``Convite à Filosofia", não sendo ``text-book" de física, não expõe demonstrações e definições da mecânica quântica, mas problemas filosóficos nascidos com ela: a) problema da substancialidade e individualidade dos seres físicos (exemplificado com a questão partícula-onda); b) problema da causalidade física (exemplificado com a questão determinismo-acaso); c) problema do sujeito do conhecimento científico (exemplificado com a questão observador-observado). A discussão visa a sugerir aos estudantes que a imagem vulgar da ciência desvaloriza a própria ciência, desconsiderando seu aspecto essencial, qual seja, a posição incessante de novos problemas para os quais novas respostas são buscadas. Visa também a sugerir aos estudantes um problema central nas discussões de história e filosofia das ciências: o conhecimento científico é contínuo, linear e progressivo ou feito de rupturas, descontinuidades e revoluções científicas?
O que é espantoso na carta de um suposto cientista é que: 1) descarte numa penada a Escola de Copenhagen, como se a discussão formalismo versus observacionismo já estivesse resolvida, desconsiderando, portanto, quase um século de debates que estão longe de haver chegado a uma conclusão satisfatória; 2) descarte numa penada o problema da conservação ou não conservação da energia, como se a discussão em torno da hipótese ergódica estivesse resolvida, desconsiderando tanto os sistemas não ergódicos (como os dos trabalhos de Kolmogorv, Arnold e Moser) quanto à limitação da universalidade dos sistemas ergódicos (como nos trabalhos de Prigogine ou de Sina‹), numa discussão que está longe de haver sido concluída; 3) confunda determinismo dezenovista e determinação da necessidade dos fenômenos.
O determinismo é uma ideologia cientificista do século 19, nascida da apropriação universalizada das idéias de Laplace, cujo pressuposto fundamental é o de que o estado atual de um sistema pode ser inteiramente deduzido de seu estado anterior e permite deduzir inteiramente seu estado futuro. Em instante algum, ``Convite à Filosofia" afirma a ideologia oposta, isto é, o acaso universal. O que é dito é que a concepção dezenovista cai por terra com a física contemporânea, porque, mantendo-se os parâmetros laplacianos, será necessário afirmar a existência do acaso e que este, que a ciência julgara haver expulsado, entraria pela porta dos fundos.
É este determinismo que tanto Heisenberg quanto Einstein e outros cientistas desmantelaram. Por que surgiu a discussão de uma física probabilística? Por que surgiu a idéia de uma física estatística? Por que Einstein, que se dizia um espinosista (necessidade absoluta), afirmava que ``Deus não joga dados" e preocupava-se com o fato da mecânica quântica não ser uma ``teoria completa"?
Somente uma mula imaginaria que os cientistas se puseram a discutir tais problemas sem motivo algum, o que seria o caso se a concepção determinista houvesse ficado intacta sob os efeitos das novas teorias. Passaram a discuti-los porque, tendo uma inspiração ocidental causalista e necessitarista, formularam teorias que, modificando os conceitos de espaço, tempo, substancialidade, causalidade etc., destruíram a antiga concepção do determinismo e precisaram encontrar outros caminhos para formular a idéia de determinação necessária dos fenômemos. É disto que ``Convite à Filosofia" trata.
Cômica a confusão feita pelo prof. Waldyr entre um observador empírico e psicológico (ele ou a mula) e o sujeito do conhecimento científico. Por que Heisenberg colocou em questão o sujeito cartesiano? Por que Einstein afirmou-se espinosista? Por que Von Neumann escreveu que há uma indeterminação no conceito de observação, pois ``não é possível decidir, senão arbitrariamente, que objetos devem ser considerados parte do sistema observado e quais partes do aparato do observador"? Trata-se da idéia do sujeito situado, que vem pôr em questão a idéia clássica do sujeito do conhecimento como kosmotheoros, e não de alguém pastando em companhia de outra mula.

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