São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Chave para ouvir Mozart

SÉRGIO MICELI
MOZART - SOCIOLOGIA DE UM GÊNIO

Norbert Elias tradução de Sergio Goes de Paula Jorge Zahar Editor, 150 págs. R$ 13,00
A 27 de janeiro de 1781, dia do aniversário de 25 anos de Mozart, foi realizado em Munique o ensaio geral da melhor opera séria do século 18, ``Idomeneu, Rei de Creta", encomendada pelo Eleitor da Baviera para as festividades do carnaval. Essa experiência de trabalho determinou os novos rumos de todas as dimensões de sua vida: ficou mais confiante quanto aos recursos de sua criatividade no domínio musical e dramático; teve coragem para largar seu emprego e livrar-se de um futuro medíocre e confortável na província; encontrou forças para romper com o pai, com o arcebispo, com a classe no poder, transferindo seus desejos e investimentos para Viena, o espaço no mercado musical que lhe garantiria a continuidade de sua atividade de composição tal como idealizara.
Poder-se-ia estabelecer uma síntese do argumento construído por Elias a partir das circunstâncias e desdobramentos derivados dessa exaltante experiência que acabou determinando uma cadeia de rupturas e dilaceramentos, convertendo esse ano em momento de virada na trajetória pessoal e profissional do jovem compositor. Entusiasmado por essa oportunidade quase única de poder continuar compondo no gênero mais prezado na escala de valores da sociedade de corte, Mozart estendeu sua licença para além das seis semanas que lhe havia concedido o arcebispo de Salzburgo. Apesar do grande sucesso alcançado pela obra, tamanha desfeita acabou azedando as disposições de seu empregador, culminando com o rompimento no início de maio. Foram infrutíferas as tentativas paternas de remendar a situação, Mozart manteve-se irredutível em seu projeto de instalar-se como `artista autônomo' em Viena. Ali alugou um quarto na casa da senhora Weber, de cuja filha mais velha fora amante e com cuja irmã Constance decidiu se casar em dezembro, outra vez fazendo desandar os projetos do pai a seu respeito. As turbulências de 1781 sinalizam um transe biográfico esclarecedor, tornando explícitos os nexos da interpretação sociológica de Mozart como o paradigma de um artista genial prensado entre os condicionamentos impostos pela sociedade de corte e os incentivos suscitados pela formação de um público de compradores e fruidores anônimos de obras de arte no interior de um mercado livre.
A análise do caso mozartiano empreendida por Elias é sensacional, fundindo atrativos metodológicos, interpretativos e teóricos. O autor investe a candura de sua visada sociológica contra os preconceitos das positivistas reconstruções biográficas de Mozart, inclusive a mais famosa delas, a de Hildesheimer. A fonte primária dessa literatura apologética são as cartas trocadas entre Mozart e seus parentes mais próximos, sobretudo o pai, a irmã e a esposa. A lufada de ar fresco ventilada por Elias sobre tal base documental consiste em lidar com esse material na perspectiva dos valores e sentimentos dos próprios agentes envolvidos, livrando-se assim tanto do culto idealizador do gênio como do receituário ``humanizador" do artista. Nesse registro, por exemplo, são antológicos os trechos em que destrincha as idiossincrasias do compositor, o gosto pelo ``humor negro", pelas expressões escatológicas, evidenciando de que maneira essas manifestações de coprofilia verbal encontram seu lugar e sentido nos limiares então socialmente aceitáveis de comportamento, recato e sensibilidade.
Vale a pena registrar a filiação de Elias aos princípios da vertente weberiana, tal como se pode depreender dos sentidos atribuídos ao processo de racionalização, dos ligamentos entre os diversos domínios da atividade social e, em especial, dessa matriz fundante de qualquer sociologia da cultura que se preze ao reconhecer uma tessitura própria -agentes, instituições, práticas- a cada uma das experiências artísticas, balizando a investigação pelas tensões entre a dinâmica interna e as esferas conexas ao campo sob análise. Parafraseando Wittgenstein (``O que não se pode dizer, deve-se calar"), Elias conclui os escritos sobre Mozart com um lembrete útil a diversos luminares nativos (``O que não se pode dizer, deve-se pesquisar").
Os ensaios sobre Mozart revelam uma notação analítica refinada que apela ao arsenal teórico extraído de sua trilogia, em especial ``A Sociedade de Corte" (1), devendo-se ressaltar as noções de formação social, de tensões e de interdependências, por meio das quais reelabora a trama dos constrangimentos que viabilizaram e, num momento posterior, estancaram a atividade musical e a própria vida do compositor. Os textos da primeira parte articulam os elementos de uma sociologia da música na sociedade de corte, buscando mostrar como o itinerário pessoal e a carreira profissional de Mozart foram se mesclando em direções tão previsíveis, que o estado terminal de solidão e desespero a que se viu relegado levou-o à morte e a compor o ``Requiem" para si mesmo. Nesse primeiro nível macro de análise, Elias mostra as condições sociais de inserção de artistas de origem pequeno-burguesa numa formação societária dominada por uma aristocracia de corte, empregados como os demais artesãos e serviçais nos palácios dos príncipes, habituados a lidarem com os padrões de gosto e consumo da nobreza, salientando os constrangimentos derivados dessa correlação desigual de forças sociais sobre as formas, os gêneros e as linguagens musicais.
No plano pessoal, o cerne da análise procura deslindar o incrivelmente complexo relacionamento de Mozart com seu pai. O também músico Leopold Mozart fez as vezes de professor, ensaiador, empresário, projetando muitas de suas esperanças de realização social e profissional no futuro desempenho desse ``presente de Deus", arrasado por depressões e culpas quando longe de seu ``tesouro", em resumo tão apaixonado e possessivo a ponto de confundir o sentido mesmo de sua vida com o destino do filho. A despeito desse opressivo suporte afetivo, Elias oferece abundantes evidências dos sentimentos de insegurança e falta de amor-próprio de Mozart, de sua inextinguível necessidade de afeto, da fortíssima atração pelas mulheres que foram se transmutando em sentimentos ambivalentes e autodestrutivos ao captar sinais de abandono e desamor.
O conteúdo do libreto de ``Idomeneu" talvez auxilie o leitor a ajuizar melhor a matéria-prima da experiência pessoal que Mozart instilou nos seus personagens. De regresso à ilha de Creta como um dos vencedores da guerra contra os troianos, apavorado com a tempestade que ameaça a vida de todos no barco, Idomeneu promete a Netuno sacrificar a primeira pessoa que enxergasse se lhes fosse concedida a graça de sobreviver. Desesperado com as notícias do afundamento, seu filho Idamante se dirige à praia e o encontro deles sela o destino de ambos. Embora o tema e o texto do libreto tenham sido impostos pelo mecenas, Mozart não poupou empenho na tarefa de aperfeiçoá-los. Introduziu engenhosos golpes de cena no encadeamento da trama -duas tempestades fundindo ação e música nos coros, a aparição do monstro marinho, a irrupção do trovão e a voz de Netuno com os desígnios para o desfecho do drama, a enfurecida e arrebatada ária final de Electra. Ancorou a partitura em uma série de conexões temáticas e harmônicas, a começar pelo motivo da abertura, passando pela tonalidade indicativa de Idamante, recorrente ao longo da ópera e no fecho dos três atos, até o virtuosismo de inúmeras passagens orquestrais. ``Idomeneu" constitui portanto um ajuste de contas pessoal, dramático e musical, tornando a relação pai e filho o eixo comovente da trama, revelando o domínio seguro das linguagens operísticas italiana e francesa, fazendo soar a invenção musical pungente em meio às constrições estilísticas do que seria ao mesmo tempo uma obra-prima e o canto de cisne do gênero (2).
A segunda parte do volume efetua um sumário biográfico centrado nos poderes de que Mozart se sentiu investido nos domínios social, musical e sexual, a partir do êxito alcançado por ``Idomeneu", retraçando o argumento da perspectiva de um Mozart em close. Primeiro, faz um relato circunstanciado dos seus anos de formação: menino-prodígio exibido nas principais cortes e salões da aristocracia européia, atração rendosa dos concertos organizados pelo pai. Elias evidencia de que maneira essa exposição a mundos musicais estrangeiros contribuiu para a internalização de tradições musicais concorrentes. Os contactos com os maiores compositores de seu tempo, o acesso aos reformadores da ópera (Gluck, Rameau etc.), o convívio com os diversos ofícios e especialidades da área musical, toda essa esmerada aprendizagem foi espicaçando sua crescente apropriação das formas musicais a ponto de praticamente converter a atividade de compor em estratégia permanente de sublimação e único consolo de seu cotidiano. Por conta dos temores de seus competidores perante tais trunfos, foram baldados os esforços para encontrar fora de Salzburgo um posto estável de músico à altura de suas pretensões e de sua competência musical. Mozart aceita afinal a posição de organista em sua cidade natal, sustando por uns dois anos a ambição de fazer carreira e firmar sua estrela de artista na cidade de Viena que escolhera como o espaço mais instigante para divulgação e comercialização de suas obras no mercado musical da época.
O terceiro nível de análise trata dos efeitos exercidos pelos mercados musicais europeus sobre os padrões de carreira de músicos e instrumentistas numa perspectiva comparada, contrastando o centralismo associado ao virtual monopólio exercido pela corte absolutista instalada em Paris e Londres, suplantando as demais casas nobres em poder, riqueza e impacto cultural, à fragmentação vigente em países de unificação tardia como Alemanha e Itália onde ``dúzias de cortes e cidades (...) concorriam pelo prestígio e, portanto, pelos músicos". Essa correlação entre a estrutura peculiar de governo e a extraordinária produtividade da música de corte nos territórios do primeiro Império Alemão oferecem subsídios instigantes à inteligibilidade dos padrões distintivos de competição e de criatividade prevalecentes nos respectivos mercados musicais.
O livro de Elias nos faz querer ouvir de novo a música de Mozart, revalorizada pelas chaves de leitura contidas em sua interpretação. Assim como imagino haver enriquecido minha compreensão dos materiais expressivos de ``Idomeneu", tomara que esta resenha provoque no leitor uma disposição semelhante em relação à mozarteana de um dos melhores sociólogos da cultura.
1. Norbert Elias, ``A Sociedade de Corte", Lisboa, Editorial Estampa, 1987 (ed. francesa., ``La Société de Cour", Paris, Calmann-Lévy, 1974; primeira edição comercial do original em alemão em 1969).
2. O leitor interessado poderá ouvir a gravação de 1990 em CD digital-stereo, ``Idomeneo, Re di Creta" (K.366), Archiv/431674-2/AH3, sob regência de John Eliot Gardiner, com instrumentos de época, com a mezzo-soprano Anne Sofie Von Otter no papel do filho Idamante, composto originalmente para o castrado Vincenzo del Prato, a mesma intérprete da atual remontagem do Metropolitan Opera em Nova York de autoria do falecido Jean-Pierre Ponnelle.

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