São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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A transformação da filosofia

PAULO EDUARDO ARANTES
A FILOSOFIA E O ESPELHO DA NATUREZA

Richard Rorty Relume Dumará, 384 págs. Preço indefinido
Como o famigerado influxo externo -o mesmo de que falava Machado de Assis a propósito das idas e vindas de escolas literárias européias e demais panacéias científico-sociais prestigiosas- não só continua preponderante mas parece estar ingressando numa fase aguda de excitação nestes tempos de desmanche nacional acelerado, é muito provável que a tradução brasileira do principal livro de Richard Rorty, ``A Filosofia e o Espelho da Natureza", mesmo atrasada de 15 anos, desencadeie um novo surto de conversões fulminantes, desta vez ao neopragmatismo americano. É que, ao lado de uma velha amiga da casa, a Ideologia Francesa da Transgressão e assemelhados, regularmente fustigada no seu flanco (direito? esquerdo?) pelo ameno cosmopolitismo ético da Teoria (alemã) da Ação Comunicativa, a Alta Conversação, prática social sucedânea da enferrujada investigação filosófica dos fundamentos, preconizada por Richard Rorty para coroar em grande estilo a era de Esclarecimento absoluto em que já vivem as prósperas democracias industrializadas do Atlântico Norte -como nosso Autor prefere se exprimir, não por cinismo, mas com certeza por considerar que é assim mesmo, sem rebuços essencialistas, que deve falar um nominalista consequente-, representa sem dúvida uma excelente ocasião para sacudir a poeira do atraso e do dogmatismo, como nos conclamam insistentemente a fazê-lo nas altas esferas da República, sobretudo nesta hora decisiva em que também o país intelectual procura seu lugar na nova divisão internacional do trabalho.
Não será demais lembrar de saída que estas três vias alternativas de ajuste filosófico às exigências da conjuntura mundial (por ser variante da primeira, deixei de mencionar uma quarta, a Desconstrução americana, de longe a mais forte no atual mercado ideológico) não são necessariamente incompatíveis, admitindo até uma ampla gama de combinações, como poderá verificar sem dificuldade qualquer observador do divertido ``pas de trois" que elas costumam executar pelos quatro cantos do campus global. Neste gênero muito característico de coreografia, seja dito também de passagem, Rorty enxergou mais longe e saiu na frente: por exemplo, ao arbitrar com a desenvoltura dos vencedores um verdadeiro ``tête-à-tête" de gigantes como a querela em que no início dos anos 80 se envolveram Habermas e Lyotard (mas poderia ser Foucault, é claro) a respeito do caráter inconcluso ou não do assim chamado Projeto Moderno, dando razão alternadamente ora a um, ora a outro. No que andou certo, uma vez que, para um pragmatista que se preze, diferenças teóricas são diferenças sobre coisa nenhuma, e quanto ao mais, ao que verdadeiramente importa, somos todos europeus que se deram bem neste fim de século, aliás por mera contingência, pois o devir é inocente, como de resto poderia demonstrar muito bem qualquer nietzschiano parisiense.
Sendo o ecletismo sabidamente nossa paixão metodológica predominante, está claro que esta oportuna liga de bastidores entre estilos rivais de adaptação ao novo curso do mundo joga a nosso favor. Estaríamos assim tão autorizados como qualquer um de nossos parceiros metropolitanos a costurar sem maior cerimônia, digamos, a rejeição do mito da sociedade transparente (como diria um ideólogo francês em guerra com o todo), na etérea ancoragem do poder político no tecido argumentativo da sociedade (na visão moral do mundo dos neo-iluministas alemães), sem esquecer de arrematar tal figurino brandindo o estandarte da intimidade (não há transformação da filosofia sem concomitante transformação da intimidade), devidamente articulada na pluralidade democrática de suas vozes (como poderia fazê-lo algum prolixo ideólogo americano do Self infinitamente maleável, de acordo aliás com qualquer manual de auto-ajuda).
Além do mais, mudando de manual, um bom livro-texto sobre tendências filosóficas contemporâneas se encarregaria, por sua vez, de assegurar que a feliz circunstância dessa convergência é muito natural, que ela se deve em última instância ao mesmo paradigma da linguagem compartilhado pelo pós-estruturalismo, pela nova teoria crítica e pelas várias correntes pós-analíticas, que o referido linguistic turn de última geração deixou bem longe para trás, no quarto de despejo das relíquias metafísicas, os conceitos enfáticos de razão substantiva e verdade-correspondência, sujeito autocentrado e conhecimento-como-representação ou busca-de-certeza etc., e que doravante o que cabe discutir (não se faz outra coisa nas últimas duas décadas) se resume à determinação do rumo específico a tomar a partir daquela momentosa virada (que um discípulo alemão de Habermas, não resistindo ao entusiasmo inspirado pelo novo panorama que se descortinava, chegou a considerar a mais significativa conquista teórica do século 20 filosófico), se na direção de uma pragmática (da linguagem), de uma política (da linguagem), de uma poética (da linguagem), e assim por diante. A transformação da filosofia patrocinada por Rorty tomou esta última direção.
Trata-se de um livro híbrido em mais de um aspecto. Acresce que redigido por um respeitável egresso do movimento analítico, porém sem a menor intenção de oferecer qualquer contribuição positiva acerca dos assuntos obrigatórios na corporação: nenhuma solução alternativa para o problema mente-corpo, idem para as inumeráveis teorias da referência ou do dualismo esquema-conteúdo etc. São questões terminais, e os falsos dilemas que suscitam, imagens sem futuro que se desmancham no ar. Não sendo em absoluto construtivo, além do mais parasitando as variantes teóricas que vai solapando, são evidentes suas simpatias desconstrucionistas. Mas a perspectiva é sobretudo terapêutica (à maneira do segundo Wittgenstein, é claro), embora fortemente realçada pelo tempero do historicismo europeu, cuja aclimatação todavia não teria sido possível sem a colaboração do momento pós-positivista da tradição analítica, inaugurado em princípio pelos primeiros ataques de Quine à tradição da ``filosofia primeira", prolongados mais adiante por Davidson, Sellars, Kuhn etc.
Deu-se então um miraculoso recobrimento, manifesto por exemplo na ironia involuntária com que a gesticulação subversiva da desconstrução se resolve pacificamente num quadro de normalidade clínica. No centro desta reviravolta civilizacional, como era de se esperar, Wittgenstein II, só que agora também desempenhando o papel de desconstrutor mor de metáforas e arquétipos na origem de nossas mais arcaicas e arraigadas convicções filosóficas, como a da linguagem-espelho-da-realidade. Sendo pelo contrário a linguagem um mero instrumento, como sabe muito bem qualquer usuário sem fumaças especulativas, fica desobstruída a rota iluminista da desconstrução, que remontará primeiro à mítica essência vítrea de nossa mente. Desfeito o encantamento desta imagem primordial, desmorona o tabu moderno subsequente, incrustado na idéia igualmente regressiva de uma transação regulada a priori entre um sujeito cognoscente e a assim chamada realidade, marcha triunfal que culminará com a ``morte da significação" (Ian Hacking), pá de cal definitiva no propósito hoje velho de um século de converter a linguagem num tópico transcendental. Assim, o Ocidente tremeu nas bases, um abalo que de tão profundamente irreversível quase passou desapercebido, deixando tudo na mesma, como atesta, entre outras mutações radicais, o pacato funcionamento enfim desenfeitiçado da linguagem ordinária.
Um terremoto deste porte deixou várias vítimas fatais. Para abreviar, vou logo à mais saliente: a noção moderna de filosofia enquanto tribunal da razão pura, última instância encarregada de fundamentar toda e qualquer pretensão de conhecimento ou certeza, e por aí autorizada, entre tantas outras atribuições de um verdadeiro e único guardião da racionalidade, a pedir contas às demais esferas da cultura na base do conhecimento prévio das suas respectivas fundações. Visto no entanto de um ângulo mais auspicioso, devemos reconhecer nesta convulsão o trauma de nascença de uma outra cultura, agora sim totalmente esclarecida, uma cultura pós-filosófica, finalmente aliviada do fardo filistino de fornecer razões, como se o conhecimento justificado fosse uma relação especial (de espelhamento) entre as palavras e as coisas.
Aqui então a virada linguístico-pragmática propriamente dita (que não deve ser confundida com o linguistic turn de primeira geração, dos tempos da semântica clássica do início do século), a revelação de que o assim chamado conhecimento é uma prática muito especial, no fundo uma questão de ``conversação", sendo toda justificação uma ``justificação conversacional", de sorte que compreendemos o conhecimento quando compreendemos a justificação social da convicção. Já dá para notar, entre tantas outras consequências do pragmatismo, que o mencionado abalo sísmico na cultura do Ocidente abriu uma fenda intransponível (sem maiores dramas, contudo, apenas outro indício da nova normalidade) entre verdade e justificação.
Cultura pós-filosófica então é isto: curado, graças a uma terapia adequada, o desejo infantil de contato objetivo, neutro e imediato, com a realidade tal como ela é, a maioridade intelectual do sujeito pós-filosófico, liberado da carga ansiosa cristalizada em formações reativas tais como ``a teoria verdadeira", ``a coisa correta a fazer", se apresenta na alma leve de quem se sente muito à vontade por não precisar mais sustentar opiniões, por estar apenas dizendo alguma coisa sem o encargo arcaizante de dizer como realmente ela é. Assim pelo menos deveria se conduzir o cidadão esclarecido e cosmopolita das democracias afluentes do Atlântico Norte, a última encarnação do ``honnête homme", alguém polidamente empenhado em não deixar uma conversa degenerar em... seminário, numa procura platônica qualquer da verdade. Um minuto de desatenção -por motivo de recaída nessa primitiva fixação profissional-, seria o suficiente para provocar um pequeno colapso mundano, demonstração cabal de falta de tacto da parte de quem pretende encerrar uma conversação ao invés de prolongá-la indefinidamente, como seria do dever de um verdadeiro homem do mundo. Compreendamos então o tamanho de nossa gafe, caso exigíssemos de um Wittgenstein, o grande herói da cultura pós-filosófica, que possuísse opiniões sobre o modo como as coisas são: uma exigência de inequívoco mau gosto, sobretudo por colocar o referido herói numa posição perigosamente ridícula.

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