São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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A transformação da filosofia

PAULO EDUARDO ARANTES
Em suma, a lógica cultural dos novos tempos pede uma segunda reforma do entendimento, porém desta vez sem um canon estabelecido que a oriente. Ou melhor, em guerra de paradigmas com o antigo canon epistemológico-transcendental, o da enroscada (ou reflexiva?) fundação do conhecimento por um conhecimento prévio dos fundamentos etc. A ser assim, o que se pede é uma reforma do entendimento que se resolva numa nova educação estética da humanidade, já podemos prever em que termos, se é fato que o desejo de verdade é uma compulsão incivilizada.
Como os bons modos recomendam que não se interrompa a conversação da humanidade, e que para tanto se multipliquem réplicas e deixas incomensuráveis, a pedra de toque de uma cultura pós-filosófica deve ser por contraste um desejo de "edificação", que é a maneira pela qual Rorty caracteriza a filosofia transformada, por assim dizer a filosofia pós-filosófica, algo como o projeto de encontrar novas maneiras de falar, "redescrições" que possuam o condão de nos refazer à medida em que falamos, lemos e escrevemos mais, em que aguçamos o senso da relatividade dos "vocabulários finais", em cuja trama vivemos, pelo confronto simpático com descrições alternativas recolhidas numa espécie de museu-biblioteca imaginário da edificação, de fato a Cena Primitiva da Instrução. No momento em que estivermos enfim convencidos de que o modo como as coisas são ditas é infinitamente mais importante do que a mera posse da verdade, não surpreenderá que o grande protagonista da cultura pós-filosófica (um herói bem à moda de Carlyle) seja um intelectual literário, por certo de um novo tipo ainda por identificar. Por enquanto, reconheçamos o insólito do desfecho, que a grande transformação da filosofia contemporânea culmine num curioso caso de grãfinismo cultural. Mutatis mutandis, algo como uma gentrification da vida mental.
A esta altura, como estamos? Ao contrário do previsto, é bem possível que o neopragmatismo de Rorty afugente por igual analíticos e continentais brasileiros. Estou pensando é claro na nova geração. Nossos jovens incondicionais da tradição analítica (a única verdadeiramente profissionalizante) reconhecerão por certo que não estão diante de um amador, mesmo assim devem achar que Rorty exagerou, entregou os pontos cedo demais -afinal a filosofia analítica não é um estilo mas uma causa-, que se deixou impregnar inadvertidamente pela hermenêutica alemã e levianamente pelos trocadilhos de Derrida e Cia., que carregou a mão na questão do relativismo (Putnam, neste sentido, é muito mais sóbrio), voltariam a lembrar que Quine e Sellars, por exemplo, já haviam de fato selado o destino da finada "filosofia primeira", porém sem nenhuma concessão "literária", enfim que fundacionista ninguém mais é faz tempo, mas daí a converter a filosofia numa "maneira de falar" (entre outras) etc.
Mais blasés do que seus colegas analíticos -sinceramente empenhados num movimento de ilustração da cultura teórica nacional-, creio que os continentais torcerão o nariz para o lado cristão-novo de Rorty, coisa de americano de antigamente, embasbacado diante das complicações historicistas da civilização européia (nós, pelo contrário, nascemos dentro dela, o que é rigorosamente verdadeiro no que concerne à filosofia universitária), além do mais suas restrições ao vanguardismo francês (a menos que se restrinja ao ambiente inócuo da ironia privada) prenunciam recaída próxima no bom-mocismo ianque etc.
Tudo isso, e muito mais, não obstante, sou de opinião que tais reservas irão aos poucos se desfazer e que uns e outros acabarão reconhecendo que nosso Autor está no fundo lhes propondo um excelente negócio, ou melhor, um antigo negócio, por assim dizer clássico, só que agora em novos termos, exigidos aliás pela própria força ultra-moderna das coisas, a saber: uma certa divisão intelectual do trabalho que tem a idade do mundo criado pela burguesia à sua imagem e semelhança, uma espécie de distribuição bem equilibrada de tarefas entre o cálculo seco dos fatos e o imponderável das sondagens em profundidade. Fazendo a travessia do Atlântico (como franceses e alemães, em sentido contrário) e juntando as duas metades da cultura filosófica disponível, Rorty simplesmente glosou e adaptou (não tão simplesmente assim, mas nem por isso de caso pensado) aos ares do tempo um velho mote de intelectual, não por acaso americano, segundo o qual (traduzindo muito livremente) ao progresso do pragmatismo na direção do mais completo desencantamento da realidade, corresponde um igual aprofundamento do sentimento estético do mundo.
Com perdão da abreviação sumária, pois nem de longe desfiamos todos os elementos, digamos que nesse amálgama tão oportunamente reciclado de esprit de géométrie e esprit de finnesse talvez resida sua contribuição mais pessoal para a aclimatação filosófica do novo ciclo mundial de modernização conservadora, que os mais fleugmáticos chamam simplesmente "globalização", sans phrase. Assim, quando sobrevier o desastre, será por culpa da fatalidade, como costumava alegar a complacente Helena de Offenbach.

PAULO EDUARDO ARANTES é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "um Departamento Francês Ultramar" (Paz e Terra)

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