São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Eu próprio, o Outro

HAQUIRA OSAKABE

Obra Completa
Mário de Sá-Carneiro
Nova Aguilar, 1140 págs.
R$ 49,00

Poesia
Mário de Sá-Carneiro
Iluminuras, 246 págs.
RS 20,00

Acabam de vir a público, quase que simultaneamente, a ``Obra Completa" de Mário de Sá-Carneiro pela editora Nova Aguilar e o volume intitulado ``Poesia" (com textos do mesmo autor), a cargo da editora Iluminuras. Além dessas publicações, um recente simpósio foi realizado em Belo Horizonte inteiramente em homenagem ao criador de ``A Confissão de Lúcio". Tudo isto constitui indício bastante eloqente do processo de reconhecimento crescente da importância daquela figura dentro da história literária portuguesa. Isto por parte do leitor brasileiro. Mais conhecido aqui como figura complementar da aventura estética empreendida por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro acabou por ficar durante anos um pouco à sombra arrasadora do mito pessoano. Fica difícil diante da monumentalidade do genial autor de ``Mensagem" uma avaliação isenta de qualquer outro escritor português contemporâneo seu. Haverá sempre o paradigma pessoano a impor-se como referência determinante. No caso de Sá-Carneiro, o tempo consentirá na isenção necessária para uma eventual ``libertação" que até hoje não sabemos ser possível (ou imprescindível). Antes de entrar nessa discussão, convém situarmos as duas edições a que aludimos acima.
A primeira delas, a da Nova Aguilar, contou com a organização de Alexei Bueno, autor também da introdução crítica. Conta ela com uma parte inicial de apresentação (introdução, cronologia, reportagem iconográfica), com a obra em Poesia (``Dispersão", ``Indícios de Ouro", ``Últimos Poemas", ``Poemas Dispersos",``Primeiros Poemas"), com obra em Prosa (``Princípio" , ``A Confissão de Lúcio", ``Céu em Fogo" ``Dispersos"), Teatro (``Amizade", ``A Alma") e finalmente uma parte dedicada à correspondência, esta parte baseada no levantamento geral das cartas feito por Fernanda Toriello. Alerta o organizador que, embora tenha publicado tudo o que se lhe apresentou em matéria de correspondência, não tem ele ilusão de ter esgotado suas fontes.
Como se vê, esta edição, além da correspondência, apresenta novidades, pois traz a público um precioso material de difícil acesso ao comum dos leitores. É o caso da obra teatral, dos contos de ``Princípio", além da prosa dispersa. A novidade documental menor fica por conta da poesia.
Já a edição da Iluminuras, organizada por Fernando Paixão, restringe-se à parte poética e não tem o intuito documental da outra publicação. Como diz o organizador na sua introdução, com este trabalho o que se pretende é tornar Sá-Carneiro mais acessível aos brasileiros. Isto não impede que esta edição seja bastante caprichada, contendo inclusive algumas das correspondências trocadas entre o poeta de ``Dispersão" e Fernando Pessoa.
No que respeita às introduções, percebem-se intuitos bastante distintos em seus autores. Alexei Bueno dá ao seu ensaio o título de ``Sá-Carneiro e o Brasil: a Procura do Último Ideal". Na verdade, o ensaio tem o intuito de correlacionar não tanto ressonâncias mas similaridades e contraposições várias entre Sá-Carneiro e nossos poetas. Assim, quanto ao sacerdócio artístico, o autor relaciona o poeta a Cruz e Souza, indicando que semelhanças de ordem estilística só serão localizadas no poeta catarinense Ernâni Rosas. O ensaio de Alexei Bueno atenta para um fato importante que tem a ver com entrelaçamentos sutis que um modo particular e limítrofe de perceber o mundo acaba por conjugar Brasil e Portugal. A incidência sobre o nome Augusto dos Anjos, nesse caso, acabou sendo inevitável. Acredito que aquele modo limítrofe e dramático de percepção do mundo não seja outro senão o do ``outsider", daquele tipo de subjetividade situada não só fora, mas sobretudo à margem de todas as conveniências. E Sá-Carneiro, antecipado em Portugal por um Gomes Leal, é um bom exemplo desse tipo de inteligência, que, por ausentar-se dos seguros indicadores de uma visão estabelecida, perde-se na vertigem de seu próprio desgarramento.
É nesse ponto que podemos fazer referência à introdução de Fernando Paixão. Preocupado com o estilo e com a contemporaneidade espantosa de Sá-Carneiro, o poeta e ensaísta Fernando Paixão vai insistir no fato de que é ``através de um turbilhonamento imagético e rítmico que o poeta representa um eu cindido". Com razão, mas haveria que insistir no fato de que o referido turbilhonamento resulta de uma espécie de permanente ``flutuação à deriva" vivida pelo poeta.
O profundo fascínio de Sá-Carneiro pela estética do Decadentismo, manifestado não só em seus poemas, mas em quase toda a sua obra de ficção tem a ver diretamente com esse viés marginal. Há um conto em ``Céu em Fogo", ``Asas", em que o seu duplo conhece uma espécie de gênio russo delirante e decadente de quem ficticiamente verte para o português um longo poema. A fixação do narrador-duplo de Sá-Carneiro no poeta decadente (Petrus Ivanowitch Zagoriansky), espécie de príncipe exilado, constitui um assentamento ficcional de sua marginalidade. A figura do poeta-personagem, seu poema, nada mais são que a cristalização rutilante do brilho maldito com que o Decadentismo consagra seus eleitos.
Mas, se até aqui vimos acentuada a marginalidade da sensibilidade, da percepção do eu poético em relação ao mundo em Sá-Carneiro, há que se atentar para uma forma muito particular de desgarramento que acaba por se contrapor aos seus retiros dourados, outonais e principescos, um exílio sinistro: o exílio do próprio corpo. Vocacionado para o dandismo e a sedução, não vacila ele, entretanto, em escrever estes versos:
``Eu queria ser mulher para ter muitos amantes / e enganá-los a todos -mesmo ao predileto- / Como eu gostava de enganar meu amante loiro, o mais esbelto, / com um rapaz gordo e feio de modos extravagantes" (grifos nossos). Quem seria esse rapaz gordo e feio que se vingaria do amante loiro? O mesmo sobre o qual o próprio sujeito do poema dirá: ``Eu queria ser mulher para me poder recusar".
``O Rei-Lua Postiço", ``O Esfinge Gorda". De uma só vez se rompe o sonho do retiro dourado. Nem rei e nem esfinge, apenas a flacidez renegada. Assim é Sá-Carneiro, aquele que viveu no múltiplo desterro: o da sensibilidade, o do sexo, o do corpo. Esse desterro, mesmo a mais incisiva das homenagens será incapaz de resolver. O ``abraço de fogo" dos deuses em seus eleitos, de que Fernando Pessoa fala na sua famosa homenagem, assinala um estigma e não uma consagração.
Retornemos aos livros referidos, cujo mérito só nos resta exaltar.
Voltando à questão lançada no início desta resenha sobre a eventual ``libertação" de Sá-Carneiro em relação a Pessoa, convém não iludir a própria história literária das primeiras décadas deste século. Mesmo que se admita e se comprove a total autonomia de um em relação ao outro o fato é que algo mais profundo do que nosso desejo de objetividade se passou entre ambos. Em brilhante conferência proferida no referido simpósio em Belo Horizonte, Teresa Rita Lopes defendeu o ponto de vista de que, sem o contato com o autor de ``Dispersão", dificilmente Pessoa teria constituído seu heterônimo maldito: Álvaro de Campos. Ora, se isto assinala certa dependência (a de Pessoa em relação a Sá-Carneiro), que se dirá da importância da personagem ``Fernando Passos", o poeta que o alter-ego de Sá-Carneiro no referido conto de ``Céu em Fogo", acaba por erigir como o novo gênio que surge? Em algum momento, retomei a expressão ``abraço de fogo", tirada de Pessoa. Teresa Rita Lopes desloca-a dessa forma: não apenas os deuses abraçam com fogo Sá-Carneiro e seus eleitos. É desse mesmo fogo o elo que acabou unindo Pessoa e Sá-Carneiro, fazendo com que a grandeza de um fosse a condição do outro, da mesma forma com que a dor de um acabasse por se traduzir simbioticamente numa transmutação cósmica do outro.

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