São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Dragões, borboletas e brasis

NICOLAU SEVCENKO
O BRASIL DOS VIAJANTES

Ana Maria de Moraes Belluzzo Metalivros, três volumes (156, 168, 192 págs.) Distribuição: bibliotecas, museus, instituições culturais Informações: tel 011 262.0355
Expedição Langsdorff - Acervo e Fontes Históricas
Boris Komissarov Tradução: Marcos Pinto Braga Editora da Unesp, 126 págs. R$ 16,00
O Olhar Europeu - O Negro na Iconografia Brasileira do século 19
Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro. Edusp, 235 págs. R$ 39,95
Saudades do Brasil
Claude Lévi-Strauss Tradução: Paulo Neves Cia. das Letras, 227 págs. R$ 62,00

Tudo começou no Jardim do Unicórnio. É um mito antiquíssimo, cujo sentido básico se concentra na figura misteriosa do Unicórnio que, como todos sabem, não é uma criatura real, mas existe. Muito poucos já viram o Unicórnio, porém, a questão é exatamente essa, só os que viram é que contam ou serão contados. Ele vive no jardim da perfeita paz, em meio ao qual há uma árvore, de cujos pomos emanam a vida e a sabedoria e de que ele é o guardião. Bem no centro brota a fonte da eternidade, dando origem a quatro rios, de onde fluem a abundância, a harmonia, a felicidade e a saúde, garantida por um clima sempre ameno e uma natureza para sempre verdejante. Lhe soa familiar tudo isso?
Deve soar, muito embora esse mito arcaico seja de procedência iraniana. O fato é que ele deu origem a diferentes versões, algumas das quais estão fixadas nas raízes de nossa cultura, dita Ocidental. Na versão hebraica há o Jardim do Éden e a serpente. Na versão greco-romana há o Jardim das Hespérides e o dragão Ladon. No mito iraniano original, o fruto desejado da árvore sagrada é a romã. Nas versões mediterrâneas hebraica e greco-romana, a fruta cobiçada é a maçã. Porém, tanto o mito iraniano quanto a versão hebraica, sugerem que o Jardim da bem-aventurança estaria localizado em algum ponto remoto do Oriente. Já o Horto da proibição, para os gregos e os romanos, ficava em algum ponto inalcançável para além de Gibraltar, no rumo do Ocidente, referido como as ``Ilhas Afortunadas".
Um fato interessante a respeito dos mitos é que, com o tempo e os contatos entre as culturas, eles tendem a se contaminar. Durante a Idade Média, essa tradição cultural herdada da Antiguidade seria fertilizada pelos complexos ciclos de mitos celtas. É sabido como toda a lírica ocidental se funda até hoje no ciclo de lendas sobre o amor obsessivo que uniu tragicamente Tristão e Isolda ou como o protótipo do romance de aventuras foi fixado pelos mitos relativos à demanda do Graal pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Menos conhecido porém é o ciclo das viagens místicas de São Brandão, na senda de Avalon, cujo nome aliás significa macieira, que o levaram a sucessivas visitas a um arquipélago perdido em meio ao Atlântico. Numa dessas ilhas ele encontra o Jardim das Delícias. O nome dessa ilha, segundo a lenda, é Hy Bressail ou, mais simplesmente, O'Brazil, o que em língua celta significa ``Ilha Afortunada".
Cristóvão Colombo, assim como inúmeros outros navegadores e conquistadores, estava impregnado desse imaginário mítico. Sua convicção cega de que encontraria os tesouros miríficos do Oriente descritos por Marco Polo, se viajasse em direção ao Ocidente, derivava mais dessa combinação de substâncias míticas que de qualquer cosmografia empírica. Daí suas descrições do Novo Mundo numa linguagem exaltada, cheia de alusões à tradição das lendas medievais. Mas o Renascimento, em cujo contexto se deram as navegações, comportava igualmente uma tensão no sentido contrário. As exigências postas pela centralização política e pela expansão capitalista demandavam esforços no sentido de uma percepção direta e rigorosa dos territórios, a fim de garantir a sua mais metódica exploração, fosse no sentido militar, comercial ou científico, o que afinal dava na mesma.
Pode-se conjeturar que a arte da paisagem nasceu na zona de fronteira entre essas duas forças opostas. É possível vislumbrar o Jardim se metamorfoseando na Ilha, que por sua vez se transforma nessa construção científico-estética que é a paisagem. Essa dupla substância se manifesta evidente nos pioneiros, como por exemplo a nostalgia visionária com que Bruegel representa o mundo rural flamengo flagelado pela superexploração ou as perspectivas delirantes com que Altdorfer une céu e terra num mesmo vórtice onde se debatem ordem e caos. O advento da paisagem introduz como seu corolário o ícone topológico, que corporifica os desígnios latentes da natureza animada pela imaginação e pelo desejo. Mineral, vegetal, animal ou humano, no melhor dos casos uma íntima interação entre os quatro, qualquer que seja seu feitio ou condição, esse ícone ao mesmo tempo ratifica o rigor da observação direta, ``científica", do artista e proporciona a dimensão evasiva da imagem, sua remissão ao imaginário mítico, seu valor exótico.
A publicação de ``O Brasil dos Viajantes" complementa um trabalho em todos os sentidos admirável da professora Ana Maria de Moraes Belluzzo, de pesquisa, localização, contatos e organização de um vasto e raro acervo de imagens acumulado pelos diversos artistas itinerantes que percorreram o Brasil, retratando aspectos do território e suas gentes. A exposição desse material apresentada no Masp e a publicação do respectivo catálogo, representam um marco na nossa produção cultural e o mais efetivo resgate da memória visual sobre o Brasil. Os três volumes que compõem o catálogo são de um impacto deslumbrante, tanto pela variedade e refinamento do material visual, quanto pela avaliação abrangente que proporciona sobre a percepção e projeção imaginária européia em relação a esse país longínquo e sempre estranho.
A articulação da obra segue um plano bem engendrado, composto em três grandes blocos. A primeira parte, denominada ``Imaginário do Novo Mundo", revela o choque para a consciência européia provocado pela inesperada descoberta de um vasto continente, até então nunca suspeitado e avesso a deixar-se enquadrar em quaisquer das tradições cosmográficas e antropológicas disponíveis. O Novo Mundo tanto encanta e atrai, pela natureza abundante, sensual e amena, quanto aterroriza e instila a ira pelas ameaças da selva virgem e do clima tropical, pela suposta ausência de leis e normas morais, pelo paganismo escandaloso e a ignomínia canibal. O que havia sido encontrado afinal, o Jardim do Paraíso, ou as portas do inferno? Na dúvida, como a volta pelo Atlântico demorava muito, o jeito era relaxar e pintar e, para evitar maiores riscos, dar uma pincelada para Deus e a outra para o Capeta.
Em meio às mais extravagantes fabulações visuais em torno da selva e do índio, se destacam a sobriedade e a competência analítica dos holandeses da corte de Nassau ou o rigor descritivo com que os huguenotes franceses como Thevet e Jean de Léry lançaram as bases do olhar etnológico. Nessa linha, o caso de Albert Eckhout desponta como excepcional. Seus ícones topológicos eram indígenas, negros ou mestiços nascidos no Brasil, quando não naturezas mortas com frutas locais. Ele os representa com um apurado senso naturalista de exatidão, enquadrados porém em composições saturadas de signos vegetais, animais ou ambientais de tropicalidade. Como resultado, o objeto temático do retrato adquire uma excepcional centralidade e elevação sob a exuberância de referências que exaltam sua singularidade tropical, atribuindo à composição um halo sublime que a retira do contexto histórico opressivo da conquista colonial, transformando-a num índice intemporal de pureza primitiva. Operações mítico-estéticas como essas suscitaram a construção da imagem do ``bom selvagem", em franco sucesso desde então, das Tapeçarias das Índias às superproduções de Hollywood.
O segundo bloco de obras, reunido sob o tema ``Um lugar no Universo", concentra os trabalhos resultantes das tecnologias de representação visual destinadas à conquista militar, expansão, pesquisa científica e exploração de novos recursos. Mapas, ilustrações de naturalistas, desenhos de exploradores, registros de história natural e antropologia física, todo um vasto repertório de imagens desenvolvido como suporte de uma atividade cada vez mais intensa de esquadrinhamento e apropriação.
Em paralelo, no terceiro bloco ``A construção da paisagem", com a vinda da corte portuguesa para o Brasil em meio às turbulências da Revolução Francesa, o próprio D. João 6º, fascinado com sua nova sede imperial, promove a invasão do país por inúmeros artistas e sábios sequiosos de contemplar a intimidade da bela virgem, encabeçados pela Missão Francesa, seus aliados austríacos e seus tutores ingleses. Coincidindo com os albores do Romantismo, esses fugitivos da Europa revolucionária e industrial projetariam na natureza brasileira seu idílio de um mundo paralisado na história, solidamente enquadrado na natureza esfuziante, paternal, instintual, festivo. Um mundo fora do tempo, para sempre igual a si mesmo, sacralizado no seu invólucro excêntrico, ilha afortunada no mar revolto da história.
Nem todos os estrangeiros que chegavam com a corte porém procuravam refúgio dos horrores da guerra européia. Alguns queriam, de uma forma ou de outra, trazer a guerra para cá. Foi o caso dessa fantástica personagem, o Barão Georg Heinrich von Langsdorff, alemão de Wõllstein, misto de médico, naturalista, explorador, diplomata e espião, como era de hábito na época. Pondo-se a serviço do Tzar Alexandre 1º em 1803, participou da primeira viagem russa de circunavegação, travando então seu conhecimento inicial com o Brasil. Voltaria em 1813, já nomeado Cônsul-geral do Império Russo junto à corte do Rio de Janeiro. Seus objetivos principais eram dois. Primeiro, prover o governo do czar das informações necessárias para o projeto russo de obter uma base militar no Atlântico Sul; o segundo, muito mais ousado, era compor uma teoria unificada sobre a interação e transformação das espécies vivas.
Com esse objetivo científico em vista, Langsdorff montou uma espécie de estação experimental nos arredores do Rio, a Fazenda Mandioca, logo tornada o bastião dos sábios da corte. Organizou em seguida uma enorme expedição, com uma renomada elite de cientistas internacionais, destinada a atravessar o sertão central do Brasil até a Amazônia, levantando e catalogando espécies. Foi uma tragédia. Muitos morreram e Langsdorff, vitimado pela malária, perdeu totalmente a memória. A coleção de espécies e desenhos contudo foi feita e mandada para a Rússia. O professor Boris Komissarov, da Universidade de São Petersburgo, nos apresenta uma meticulosa análise dos documentos que registram essa épica expedição para a fonte oculta da vida. Não deixa de ser paradoxal, nesse caso, e sintomático, que a tentativa de mergulhar na natureza com o objetivo de promover a atualização científica, tenha culminado em morte, loucura e esquecimento.

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