São Paulo, segunda-feira, 1 de maio de 1995
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Harnoncourt reinventa clássicos de Bach

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num ensaio já quase clássico sobre os clássicos, Italo Calvino nos diz que um clássico é um livro ``que estamos sempre relendo, nunca lendo". Mas diz também que ``toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta, como a primeira". As duas frases poderiam servir de epígrafe para esta gravação dos ``Concertos de Brandemburgo", na interpretação de Nikolaus Harnoncourt e do Concentus Musicus Wien.
Hoje, como há 40 anos (e como sempre), Bach (1685-1750) precisa ser ``defendido de seus admiradores", nas palavras do filósofo Theodor Adorno. E não há outra maneira de fazê-lo senão reinventando sua música, levando-a de volta a si mesma pelas vias da contemporaneidade.
O nosso Bach é de uma vez só mais antigo e mais moderno. O mais antigo é também o mais conhecido, nessas décadas de interesse pelos instrumentos de época. O mais moderno é mais raro, mas transparece na gravação de Harnoncourt.
Ensaísta e professor, além de regente, Harnoncourt nos dá um ``Concerto nº 6" que talvez não seja o mais imediatamente compreensível, ou sedutor, mas é de longe o mais interessante em catálogo. Escrito só para instrumentos graves, o concerto é um drama ou combate entre as violas (modernas) e as violas da gamba (antigas). Esta batalha é inaudível quando se toca em orquestras atuais, de violas e violoncelos.
A nova gravação revela o quanto a musicologia pode contribuir para a interpretação. Ela não é só mais próxima da sonoridade da época; de um ponto de vista musical, faz muito mais sentido. E restaura o caráter insólito -estranho, mesmo- deste clássico tão conhecido, e tão desconhecido.
O ``Concerto nº 5", para flauta, violino, cravo e orquestra, foi assunto de um ensaio recente da musicóloga Susan McClary (em ``Music and Society", Cambridge University Press). Para ela, o grande solo de cravo, no primeiro movimento, representa a ``Vingança do Acompanhante", liberado de seu papel subsidiário.
Charles Rosen contesta a idéia, lembrando que o ``acompanhante", no caso, era o diretor-musical da corte de Cõthen, com o maior salário da orquestra. Mas concorda que o solo é estarrecedor. O concerto não é nada mais nada menos que o primeiro concerto moderno para instrumento de teclado.
Comparada à gravação do mesmo concerto pelo conjunto Música Antiqua Kõln (Deutsche Grammophon) ou a outra interpretação camerística como a da Petite Bande, que tocou o concerto em São Paulo no ano passado, esta é uma visão mais orquestral, não só pelo tamanho da massa sonora. O concerto soa maior, mais ponderado e consciente de sua própria estatura. Dos três cravistas, este também me parece o melhor, mas foi condenado à anonimidade no encarte.
No ``Concerto nº 3", o mestre barroco está às voltas com uma obsessão numérica: são três ``coros" instrumentais, cada um em três partes; cada seção também é dividida em três e assim por diante. A aritmética, neste caso, como na ``Paixão segundo São Mateus", nas ``Variações Goldberg" ou na ``Arte da Fuga", é um instrumento da engenharia divina, que faz do universo uma questão de números, traduzidos em sons.
Sem descuidar da matemática, esta é mesmo assim a interpretação mais solta do disco. Nos outros concertos, há uma tendência à marcação pesada dos compassos, o que se ressalta ainda por um desequilíbrio da gravação. Mas não aqui, onde tudo se move com uma confiança impressionante. O único senão é uma cadência para violino, que Harnoncourt insere entre os dois movimentos (a partitura indica apenas dois acordes); uma boa idéia, mas a cadência é desapontadora.
Completa o disco a ``Abertura nº 3", com a famosa ``Ária na Corda Sol". Resistindo como pôde à interpretação convencional (para não dizer ``melosa"), Harnoncourt acaba nos dando uma versão muito plana. O que ele visa é um contraste forte entre o estilo ``italiano" da ária, de um lado, e a abertura e as danças ``francesas", de outro.
Bach é um compositor extraordinariamente livre nas suas escolhas de estilo e material. Faz uso do que quer, mistura elementos, reúne passado e presente, alta e baixa cultura. Quanto mais constraste, então, melhor, mas a interpretação, neste ponto, me convence menos do que a idéia em que está baseada.
Mesmo nisto, contudo, a gravação tem personalidade e nos faz pensar em Bach com outros ouvidos. ``Os clássicos", dizia Calvino, ``são livros que quanto mais pensamos conhecer mais se revelam novos, inesperados, inéditos". Numa época de profissionalismo cada vez mais repetitivo, é um alento escutar um músico como Harnoncourt, tão à vontade com sua imaginação e cheio de força para reinventar o passado. É uma lição de música, e de leitura.

Disco: Concertos de Brandemburgo nº 3, 5 e 6 e Abertura nº 3
Interpretação: Concertus Musicus Wien
Regência: Nicolaus Harnoncourt
Gravadora: CD Teldec (importado)
Preço: R$ 18 (em média)

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