São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 1995 |
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Scorsese reconta o cinema americano
AMIR LABAKI
Scorsese não se amedrontou diante da magnitude de seu tema. Dezenas de boas séries já foram realizadas sobre o cinema americano, muitas com recortes específicos (a era muda, os grandes autores de Hollywood, o sistema dos estúdios etc.). Apostou na originalidade de sua visão e no seu poder de contador de histórias. ``Uma Viagem Pessoal" é um delicioso passeio tendo por guia um diretor monstruosamente cinéfilo. ``Me interessava propor uma outra história do cinema americano: uma espécie de história alternativa", afirma Scorsese ao último número da revista francesa ``Cahiers du Cinéma". A partir de uma revisão da teoria dos autores desenvolvida sobretudo na França dos anos 50 e 60, Scorsese dedica sua série principalmente à figura do diretor de cinema. A questão central são os desafios para que uma personalidade artística abra caminho por entre a selva industrial de Hollywood. A grande sacada, porém, foi a opção de Scorsese pelo marginal, pelo obscuro, pelo desconhecido. Não são as obras clássicas de John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock que vão lhe servir de referência. Rompendo com o que chama de ``culturalmente correto", Scorsese procura resgatar o cinema de diretores subestimados e esquecidos como o pioneiro Frank Borzage (``a grande revelação para mim nos últimos cinco anos"), o ainda ativo Samuel Fuller ou o surpreendente Byron Haskin (``I Walk Alone", 1947). Mais: Scorsese apresenta pessoalmente a série, definindo-a como um ``tour" pelo seu próprio ``museu imaginário". A subjetividade da releitura é que lhe empresta muito do charme e do impacto. A estrutura é cristalina. Cada episódio é dividido em capítulos sempre relacionados à figura do diretor. Scorsese depõe diretamente para a câmera e comenta longamente em voz ``off" os trechos escolhidos a dedo. Aqui e acolá entram curtas entrevistas com outras personalidades do cinema americano, feitas para a série ou selecionadas de outras produções. O primeiro capítulo divide-se em duas partes: ``O Dilema do Diretor" e ``O Diretor Como Contador de Histórias". Scorsese começa lembrando seu ``contágio" pelo vírus da cinefilia aos quatro anos, quando sua mãe levou-o para assistir o western ``Duelo Ao Sol" (1946). O papel dominante neste filme do produtor David O. Selznick, em contraste com o poder do diretor contratado King Vidor, ilustra a tese scorsesiana do cineasta como ser essencialmente modesto e integrado num grupo. O sistema hollywoodiano visto por dentro encontra sua melhor dramatização, segundo ele, em ``The Bad and The Beautiful" (1952), de Vincent Minnelli. É a eficiência do cineasta como contador de histórias e seu talento para alterar por dentro os fundamentos de cada gênero que define o grande diretor. Brevemente, Scorsese historia três deles: o western, o filme de gângster e o musical. Quanto ao faroeste, sintetiza com três dos filmes de John Ford estrelados por John Wayne (``No Tempo das Diligências", de 39, ``Legião Invencível", de 49, e ``Rastros de Ódio", de 56) a progressiva complexidade do gênero. A evolução do cinema de gângster tanto dramática como cinematográfica parte de ``Scarface" (1932) para chegar a ``O Poderoso Chefão" (1972). Scorsese permite-se duas pequenas confissões. Reconhece a grande influência de dois filmes esquecidos sobre suas próprias obras. ``Goodfellas" (1989) bebeu em ``I Walk Alone", assim como ``New York, New York" (1977) inspirou-se tremendamente no enredo e na cenografia de ``My Dream Is Yours" (1949). ``O Diretor Como Ilusionista" abre o segundo episódio. É a vez de mostrar como a gramática cinematográfica andou de mãos dadas com a técnica. D. W. Griffith (``O Nascimento de Uma Nação", 1915) surge como o pai de todos. Scorsese rende sua maior homenagem a Stanley Kubrick, definindo-o como o herdeiro vivo do patriarca, ao realizar ``o perfeito casamento entre arte e tecnologia em nome da ilusão". Segue-se ``O Diretor Como Contrabandista", o mais longo segmento, ligando o segundo e o último capítulos. Scorsese chama de ``contrabandistas" aqueles diretores que trabalhavam com as regras institucionais dos grandes estúdios, mas subvertiam a ortodoxia esperada. Jacques Tourner (``Cat People", 1942) merece as maiores atenções, mas Max Ophuls, Fritz Lang, André de Toth e Douglas Sirk, não por coincidência todos cineastas emigrados, pertencem ao clube. Por fim Scorsese apresenta sua lista de ``O Diretor Como Iconoclasta", homenageando aqueles que ousaram enfrentar o sistema. Seus eleitos são, entre outros, o Griffith de ``Broken Blossoms" (1919), Eric von Stroheim, Joseph von Sternberg, claro, Orson Welles, o Chaplin de ``O Grande Ditador" (1940), Elia Kazan, Otto Preminger, Billy Wilder, mais uma vez Kubrick e John Cassavetes. As explicações aqui se encurtam, como se o tempo obrigasse a uma síntese imprevista. Reforça-se a impressão quando, para encerrar, Scorsese elenca todos aqueles diretores por ele adorados e até aqui excluídos, de Lubistch a Renoir, de Mankiewicz a Huston. ``Uma Viagem Pessoal" pára no início dos anos 70. ``Barry Lindon" (1975) de Stanley Kubrick, louvado por Scorsese como um de seus filmes prediletos, é o mais recente filme citado. ``Não tenho distanciamento para falar de minha geração", reconhece o cineasta. A grande força de seu filme é sua radical antinostalgia. Texto Anterior: Loach resgata a Guerra Civil Espanhola Próximo Texto: 'Você vale o dinheiro que faz' Índice |
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