São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 1995
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Justiça Militar e corporativismo

HÉLIO BICUDO

O juiz-presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, sr. Antonio Augusto Neves, que é coronel da PM paulista, investiu, em artigo publicado nesta Folha, contra o deslocamento da competência da Justiça Militar estadual para a Justiça comum, do processo e julgamento dos crimes praticados por milicianos contra civis.
Estes crimes incluem desde espancamentos, lesões corporais, prisões ilegais, extorsões e torturas até eliminações físicas, como vem acontecendo desde o instante em que o chamado ``pacote de abril" -imposto à nação pelo general-presidente Ernesto Geisel- determinou a alteração de jurisprudência mansa e pacífica, cristalizada em súmula do Supremo Tribunal Federal, que considerava a Justiça comum competente para o processo e julgamento de oficiais e praças das Polícias Militares, quando praticassem aqueles crimes, de natureza eminentemente civil.
Essa questão foi discutida e votada na Câmara dos Deputados em 1992. Foi mal discutida e pior votada, porque, contrariando o projeto original apresentado, deslocava-se a competência apenas dos crimes dolosos contra a vida, para entregar o seu julgamento aos tribunais civis, reservando-se, todavia, a sua investigação à própria PM.
Na verdade, mutilado que foi o projeto originário, inspirado nas conclusões da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou a eliminação de crianças e jovens em todo o país e que apontava como uma das principais causas dessas eliminações a impunidade de que gozavam os milicianos, esse projeto se tornara, como aprovado na Câmara, absolutamente inócuo.
Em primeiro lugar, porque o Tribunal do Júri é a instância própria para o julgamento dos crimes de homicídio doloso. Em segundo, porque entregando -aliás, com evidente violação da Constituição Federal- o inquérito, quer dizer, a investigação, à própria PM, iria permitir, como acontece rotineiramente, a maquiagem da prova, para que tivéssemos apenas delitos de homicídio culposos, mantendo-se, então, em todos os casos, a competência da Justiça Militar, da PM, para o seu julgamento.
O corporativismo dessa Justiça -se é que se pode falar em justiça- tem assento em fatos concretos, que vão desde a organização das auditorias até a composição do Tribunal de Justiça Militar. Este se compõe de três coronéis e de dois civis. As auditorias deveriam ter um juiz togado, civil, e quatro militares, mas, na verdade, se nos detivermos no exame do currículo dos membros dessas auditorias, iremos verificar que os ``juízes togados" saíram, na sua totalidade, da própria PM.
Daí, para não se ir muito longe, a prescrição que ocorreu relativamente à prática de delitos de lesões corporais leves contra 86 detentos, durante o massacre do Carandiru, nos processos a que respondem os coronéis Wilton Brandão Parreira Filho, Antônio Chiari e Edson Faoro, o primeiro reformado como coronel e os dois últimos ao tempo tenentes-coronéis; os tenentes-coronéis José Luiz Soares Coutinho, Rail Mendonça Júnior, Armando Rafael de Araújo, ao tempo majores e este último comandante do Batalhão 9 de Julho; o tenente-coronel Gerson de Souza Rezende, ao tempo major e hoje comandante do Batalhão de Choque; além de 15 capitães, 16 tenentes e vários praças.
Como se vê, na PM, os réus em processo penal permanecem em serviço, são promovidos e guindados a posições de relevo na corporação.
Mas há mais. Basta assim constatar que existem inúmeros casos em que a Justiça Militar ou retardou o procedimento para uma decisão inadequada ou decretou, adotando brechas processuais, a impunidade, quer pelo arquivamento, quer pela absolvição.
Vários desses casos, por exemplares, foram encaminhados pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos ao Tribunal Internacional de Direitos Humanos.
E acrescente-se a gratuita afirmativa de que os promotores públicos podem recorrer das decisões de primeira instância. Na verdade, de que valem esses recursos diante da constituição do tribunal e do seu modo de agir? Não são desconhecidas as pressões e ameaças que esses denodados promotores sofrem no exercício de suas atribuições. É fato do domínio público, já denunciado até mesmo por entidades internacionais.
Por último, a questão da competência da Justiça Militar das PMs nada tem a ver com a desmilitarização da milícia. Esse é um outro tema em debate e que, se aprofundado, irá demonstrar que sem a ruptura do vínculo que ainda, legalmente, subordina as PMs ao Exército, por intermédio de sua inspetoria das PMs, não poderemos dar início à necessária unificação dos órgãos policiais para a instituição de uma nova polícia, treinada democraticamente para suas relevantes tarefas no domínio da segurança pública.
É preciso que não se confundam alhos com bugalhos e que enfrentemos a questão da democracia nos órgãos do Estado como a prioridade das prioridades. E o deslocamento da competência de início mencionada e nos seus termos maiores ir-se-á constituir em mais um degrau para que se atinja esse objetivo.

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