São Paulo, sábado, 27 de maio de 1995
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O Ebola e a diplomacia

JOSUÉ MACHADO

Ebola ou Ébola é o nome do maldito vírus? Marcelo Leite, ombudsman da Folha, discutiu bem a questão em sua coluna de 21/5/95. Só que foi generoso demais ao escrever sem comentários que a pronúncia recomendada pelo Itamaraty é ``Ebolá", oxítona, porque o francês é a língua oficial do Zaire. Que maravilha de burocratismo o do diplomático diplomata que disse coisa tão consistente! Medalha para ele! Será que nossos diplomatas dizem ``Lumumbá" (o herói congolês morto), ``Kinshasá" e ``Kanangá", cidades zairenses? Dirão também, como belgas e franceses, ``Alutá", ``Bongandangá", ``Opalá", ``Lulongá", ``Idiofá"? Todos esses são vocábulos zairenses. E todos paroxítonos, tônica na penúltima sílaba. Só os pronunciam como oxítonos, tônica na última sílaba, pessoas de fala francesa, porque Deus as fez assim. Que se há de fazer?
Pronunciam também ``Bangá" o último sobrenome do ditador do Zaire, Mobutu Sese Seko Kuku Ngbendu ua za Banga, no poder desde 1965, em vez de pronunciá-lo como nossa ``tanga", nossa lá delas. ``Tanga", aliás, também é palavra de origem africana, paroxítona como a maioria, e cobre mal o que deveria cobrir bem. Ou será que não?
Verdade que o francês é língua administrativa e das classes dominantes instruídas do Zaire, antigo Congo, território belga durante a primeira metade deste século. Mas as muitas tribos zairenses que formaram o Reino do Congo entre 1350 e 1400 já falavam aqueles 400 dialetos bantus e sudaneses, principalmente o suaíle, língua nacional do Zaire, há bem mais tempo, com suas palavras sonoras, as vogais abertas, como as muitas que enriqueceram a língua portuguesa. E talvez nenhuma como proparoxítona. Os portugueses, na verdade, estiveram comendo bacalhau por lá de fins do século 15 até o século 17 -bem mais tempo do que os belgas. De todo modo, não há razão para 50 anos de domínio prevalecerem sobre séculos de cultura ou costume.
Marcelo cita em segundo lugar a pronúncia ``Ébola", proparoxítona, tônica na antepenúltima sílaba, defendida por alguns. Por que ``Ébola"? Essa seria a pronúncia preferida por locutores de TV de língua inglesa. Eles que se danem. A pronúncia deles, como a dos franceses, nada tem que ver com a dos africanos ou com a nossa. Há quem alegue razões eufônicas para dizer e escrever ``Ébola". Elas só seriam ponderáveis se ``Ebola" fosse um grosso palavrão na Última Flor do Lácio.
Como pronunciam esse nome os nativos das proximidades do rio Ebola, palavra paroxítona? Dizem ``Ebola", paroxitonamente, carregando no ``bó", contam repórteres da CNN, e Marcelo Leite o registra. A pronúncia ``Ebóla" está de acordo com a dos retumbantes africanismos léxicos alegres ou tristes incorporados ao português desde os tempos da escravidão oficial ou antes deles: batuque, cachaça, camundongo, jeribita, macumba, mandinga, maribondo, maxixe, moamba, quimbanda, quimbundo, quimbete, banzo, bumbo, bunda, sim, bunda, bundo, samba, tanga, urucungo e muitos outros. Palavras paroxítonas na maioria, mas há também várias oxítonas, tônicas na última sílaba: berimbau, candomblé e outras.
Claro que tratar o continente africano com suas 800 a 1.000 línguas como uma unidade seria uma simplificação digna de um daqueles políticos de província que infestam nosso Congresso. Mas parece evidente que as palavras de origem africana são com enorme freqência ressonantes e cheias de vogais, principalmente abertas e geralmente paroxítonas.
Pode-se concluir, portanto, que a pronúncia ``Ébola" é mistura espúria da pronúncia de alguns artistas de fala inglesa com a tradução precária do francês ``Ébola", que eles pronunciam ``Ebolá". Só que o acento agudo, se houver, marca a vogal fechada e soante, não a sílaba tônica: ``ópera" (opêrá), ``camélia" (camêliá), ``sofá" (sofá), ``taffeta" (taf'tá), ``tafia" (tafiá) e muitas outras terminadas em ``a" aberto, que soam como oxítonas para eles, coisa sem remédio.
Fora a possível salada gálico-anglicana que teria gerado a pronúncia e a grafia ``Ébola", há um fenômeno típico da língua portuguesa que talvez tenha ajudado a gerar o engano provisório. Muitos tendem a pronunciar como proparoxítonas palavras estranhas, desconhecidas ou de procedência erudita. Por isso tanta gente disse, e ainda diz coisas como ``algarávia", ``árcano", ``arcedíago", ``ávaro", ``azíago", ``barbária", ``bátavo", ``celtíbero", ``cíclope", ``décano", ``estálido", ``estrátego", ``exégese", ``filântropo", ``íbero", ``líbido", ``maquinária", ``pégada", ``pênates", ``périto", ``púdico", ``rúbrica", ``préssago", ``récorde", ``simúlacro", ``tímbale" e outras. Todas essas palavras são paroxítonas, muito bem sabe a maioria dos sábios leitores. Como ``Ebola", com sílaba tônica no ``bó" de bola, que desapareça por lá e leve alguns de nossos políticos, amém.

JOSUÉ R. S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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