São Paulo, sábado, 27 de maio de 1995
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Cunha Lima dá show repentista no Senado

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem estava almoçando no restaurante Gulliver, em João Pessoa, dia 5 de novembro de 1993, suspendeu garfo e faca quando três tiros de revólver (38, cano curto) imobilizaram garçons e fizeram até pratos estremecerem. Ainda mais assustados ficaram os frequentadores do elegante restaurante quando souberam que os tiros tinham sido disparados pelo então governador do Estado, atual senador pela Paraíba, Ronaldo Cunha Lima.
O governador acabava de atirar, à queima-roupa, na cara do ex-governador e seu ex-amigo Tarcísio Burity, que levava o garfo à boca e engoliu as balas.
Lembrei-me do ``incidente" (que nem sequer levou Cunha Lima à barra de algum tribunal, levando-o, ao contrário, como cabra-macho, ao Senado Federal) há uma semana, quando o perigoso senador discursava aos seus pares contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, que resolvera visitar Campina Grande sem fazer qualquer convite ou zumbaia prévia ao quase-assassino de Tarcísio Burity.
Cunha Lima falou mal do presidente, homem sem boas maneiras, e, como é metido a poeta, repentista-parnasiano, disse o que tinha a dizer em versinhos rimados. Nessa altura, o senador Pedro Simon, encantado com aquele talento de vate rústico, instou com ele, como conta ``O Globo" de 20 de maio, para que deixasse a prosa. A partir daí, Cunha Lima respondeu mesmo aos apartes em graciosas rimas. O jornal acaba contando que ``a sessão virou um show e ele (Cunha Lima) desceu da tribuna aplaudido de pé".
E tem gente por aí achando que o Brasil está entrando no Primeiro Mundo, enquanto joga pedra no presidente da República e bate palmas, na Câmara alta, a um pistoleiro-violeiro que dá tiros na cara de desafetos.
É o Senado terceiro-mundista do melífluo Humberto Lucena, que defendeu Cunha Lima por ocasião da tentativa de homicídio dizendo que ele estava ``lavando a honra", pois Burity tinha feito não sei que restrição a não sei que filho de Cunha Lima.
É o Senado de Ernandes Amorim, traficante que outro dia fez um arreglo com seus impolutos pares: ele deixava a comissão de não sei o quê, e, em troca, o plenário o deixava em paz com sua cocaína e com mais força para lutar contra a mulher que o acusa de sortidos crimes.
Trata-se de um Brasil tão corrupto que chega às raias do inexplicável. Tarcísio Burity, o quase-morto, escapou com vida à fúria do cantador Cunha Lima, mas parece ter perdido a fala, a boca para sempre costurada de balas.
Ficou mudo e quedo. Retirou, em silêncio, sua candidatura ao Senado, enquanto Cunha Lima se elegia, e o mais que disse foi ao ``Jornal do Brasil": ``Se eu continuasse na disputa ia correr mais sangue, se não corresse o paraibano ia dizer que sou covarde". Só faltou a Tarcísio Burity pedir desculpas por não ter morrido dos tiros que levou.
Por não ter convidado Cunha Lima a acompanhá-lo na visita a Campina Grande, o presidente Fernando Henrique foi brutalmente recebido naquela cidade. Chegou-se a pensar que o ônibus em que o presidente viajava fora atingido não só por pedradas como por um tiro também, quem sabe de algum tresoitão cano curto. Ao que afinal se concluiu, não houve, na verdade, tiro nenhum. Mas os países que cultivam o hábito de deixar seus assassinos à solta nunca sabem direito a quantas andam.
Guerra e Carnaval
Dias atrás e em boa hora fui à abertura da exposição de desenhos de Carlos Scliar, no Museu Histórico Nacional. A exposição se chama ``Momentos de Guerra: Mementos". Scliar foi pracinha, aliás nada menos que cabo artilheiro da FEB, companheiro de bravos correspondentes de guerra como Joel Silveira, Rubem Braga, Egídio Squeff.
O traço singelo, mas já profundo, do cabo de 23 anos preservou para nós uma visão do que eu chamaria os bastidores da guerra, os soldados fatigados depois do combate, pensando, antes de dormir, na trincheira em que haviam estado, cheia de neve, sentindo saudades de casa, escrevendo para a namorada.
Scliar não quis ser um evocador de batalhas. Quis guardar para nós o irmão pracinha em repouso, em recolhimento, ou o povo italiano em volta, aguardando o fim dos combates para retomar o trabalho em sua horta, sua vinha, sua igreja aos domingos. Scliar me fez ver a Segunda Guerra Mundial com os olhos puros de jovens brasileiros que, num cenário de conflito mundial, sonhavam com um Brasil renovado, digno.
Depois, com Carlos Scliar nos acompanhando, subimos ao andar do Museu Histórico onde estão em exposição as esculturas, adereços, figurinos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, que ganhou o prêmio do último Carnaval com o enredo ``Mais vale um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube". Quem nos serviu de guia foi a própria organizadora da exposição, Solange Godoy.
É indescritível a emoção comunicada por aquelas salas e salas que nos fazem, ao mesmo tempo, pensar no talento colossal do povo brasileiro e naquele ``choro da energia abandonada" do verso de Augusto dos Anjos. A impressão imediata que temos ao entrar no primeiro salão é de que chegamos à caverna de Ali Babá ou de que, no momento central de um filme de Indiana Jones, deparamos não só com a Arca da Aliança como com as colunas e os repuxos do palácio da rainha de Sabá.
Os materiais -isopor, plumas e paetês, vidrilhos, fundos de garrafa, sequins dourados, pérolas de armarinho- não podiam ser mais baratos. Mas o resultado escultórico e ornamental, inspirado e conduzido nos ateliês da Imperatriz Leopoldinense pela pintora e carnavalesca Rosa Magalhães, arrasa o espectador. Quando aquela caravana de assombros desfila pela Praça da Apoteose, a impressão cumulativa cria uma espécie de vertigem no público.
Dentro do museu tudo isso se congela, se espiritualiza. E só nos fica uma espécie de gratidão pelo gênio do povo brasileiro e pela generosidade de um trabalho insano realizado por e para o puro prazer.
A verdade é que na campanha da Itália vista dos bastidores por Scliar e no colossal desbunde de talento e graça que é a exposição da Imperatriz Leopoldinense, temos pelo menos a ventura de redescobrir no fundo de nós mesmos um pouco da confiança perdida no futuro do país.

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