São Paulo, quarta-feira, 31 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

`Assassinos' mostra violência como vício

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

H á um certo preconceito em torno dos filmes de Oliver Stone. Tendem a ser esquerdistas e militantes demais -e esse é um pecado mortal hoje em dia.
O sucesso de ``Platoon", sobre a guerra do Vietnã, é coisa do passado. O gênero de filme-denúncia parece ter sido enterrado com ``JFK", e não sem razão: mostrava-se ali uma conspiração terrível para matar o presidente Kennedy, num misto de documentário e paranóia. Certo, Oliver Stone é apelativo.
Saiu agora em vídeo ``Natural Born Killers" (Assassinos por Natureza), desse diretor. É o máximo. Sua recepção crítica não foi das melhores, quando lançado no cinema; perdeu em comparação com ``Pulp Fiction", de Quentin Tarantino.
São filmes que tratam da ultraviolência no cotidiano americano. Têm enfoques opostos, embora o argumento do filme de Stone tenha sido escrito por Tarantino.
``Pulp Fiction" é um filme engraçado, cujo poder de denúncia e crítica está em mostrar os assassinatos mais brutais com bastante distanciamento e ironia. Gângsteres tremendos surgem como profissionais comuns, como gente ``normal", como funcionários preguiçosos e trapalhões.
Cria-se um efeito interessante para o espectador, que é o de encarar a violência sem tomar partido moral. A maioria dos filmes violentos é desonesta moralmente, à medida que os piores assassinatos se justificam quando cometidos em nome do Bem. Responde-se ao sadismo do espectador, sacia-se a sua sede de sangue, com o pretexto de fazer com que a justiça triunfe no final.
Se essa desonestidade é combatida em ``Pulp Fiction" por meio da ironia, em ``Natural Born Killers" Oliver Stone faz uso de uma estratégia inversa.
O filme não se distancia da violência; ao contrário, parece entrar na mente dos personagens; a câmera, a montagem são totalmente frenéticas, o filme é um delírio, uma coisa de doente -e daí resulta seu grande impacto.
Desconfio que as pessoas não gostaram tanto de ``Natural Born Killers" não porque o filme seja ruim, mas porque reagiram ao impacto que ele provoca. É uma obra histérica, insuportável, radical.
Uma das críticas que se fez a Oliver Stone nesse filme é a de que mostra dois assassinos seriais, Mickey e Mallory, como vítimas de seu meio; ``Natural Born Killers" seria uma espécie de tratado sociológico provando que o pior assassino é na verdade produto de famílias desajustadas, abusos na infância, excesso de bangue-bangues na TV etc.
Não concordo com a interpretação. Sem dúvida, Mallory (a assassina compulsiva) vive num meio familiar tenebroso, é vítima de um pai que abusa dela sexualmente.
Só que isso não é mostrado de um ponto de vista ``sociológico" e naturalista. É mostrado de uma forma perversa e surreal. O que vemos no filme é uma paródia sinistra daqueles seriados cômicos de TV, do tipo ``vida em família", ``papai sabe tudo" etc. Ou seja, para nos informar do ``background" familiar de sua personagem, Oliver Stone não recorre a nenhum realismo lacrimoso. Faz com que tudo apareça com risadas em ``off", numa sintaxe de sessão da tarde.
O filme inteiro se passa num registro irreal. Desenhos animados, cenas em preto-e-branco, cortes arbitrários, trilha sonora ``romântica", iluminação publicitária, cores de bala de goma, ângulos forçados, personagens caricatos, diálogos xaropentos; Oliver Stone faz de tudo para tornar o filme o mais estranho e onírico possível.
É como se fosse uma mistura de ``O Fundo do Coração", de Coppola, com ``Pink Floyd - The Wall", de Alan Parker, e com o ``Aqui Agora", do SBT.
Um dos personagens mais interessantes do filme, aliás, é um telejornalista que acompanha a carreira dos dois assassinos, produzindo um programa de televisão que é o equivalente americano do ``Aqui Agora".
Todo mundo é louco nesse filme. Mickey e Mallory saem pelas estradas do Oeste americano matando quem vêem pela frente. O jornalista se entusiasma com o caso. Criam-se fã-clubes de adolescentes para cultuar Mickey e Mallory. O policial encarregado de derrotá-los é um bandido da pior espécie. O diretor da prisão onde Mickey e Mallory vão parar é um demente.
Não se trata, contudo, nem de psicopatologia, nem de história familiar. Trata-se de vício. As pessoas se entregam à violência como poderiam se entregar ao crack ou ao LSD. ``Natural Born Killers" tem um ritmo psicodélico; imita exasperadamente o cérebro de ovo frito de seus personagens.
Cérebro que é capaz de envolver-se nas mais estereotipadas declarações de amor e nos crimes mais hediondos. Este talvez seja o aspecto mais perturbador do filme: a mistura tipicamente americana, tipicamente hollywoodiana, de sentimentalismo e criminalidade.
Oliver Stone mostra ``por dentro" aquilo que Tarantino, em ``Pulp Fiction", enfoca a quilômetros de distância. Os dois filmes são críticos. Qual a denúncia mais eficaz?
A frieza de ``Pulp Fiction" é mais adequada à estética atual. Oliver Stone choca em demasia. Tende a considerar que tudo é culpa da ``mídia"; desconfio que, se dependesse dele, haveria censura a programas violentos na TV.
Paradoxalmente, é o irônico e distante Quentin Tarantino que parece ter mais confiança na espécie humana. Em ``Pulp Fiction", os assassinos são cidadãos pacatos. Para Oliver Stone, todo cidadão pacato é um assassino em potencial. O demônio é uma presença real em ``Natural Born Killers"; não existe em ``Pulp Fiction". Seria este um filme mais católico, enquanto o de Stone é mais protestante?
Não sei. Não sei dizer também qual deles é melhor. A militância de ``Natural Born Killers" tem algo de repressivo e moralista em sua crítica radical. A ironia de ``Pulp Fiction" é mais moderna e inteligente do ponto de vista estético.
O filme de Oliver Stone é muito mais desagradável. Aí está a sua maior qualidade. Daqui a dez ou 20 anos, minha aposta é que será lembrado, mais do que ``Pulp Fiction", como o maior filme da década. Mas minha futurologia é de quinta categoria, e (nesse ponto Stone e Tarantino estão de acordo) talvez assim se esteja prestando a melhor homenagem ao momento atual.

Texto Anterior: Dança recebe nova leva irreverente amanhã
Próximo Texto: Lobão assina contrato com a Virgin e senta no ``banquinho" da MPB
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.