São Paulo, terça-feira, 6 de junho de 1995
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Libertinos pregam retorno dos sentidos

ADAUTO NOVAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tradição nos convida a desconfiar dos libertinos: depravados, eles nos incitam a profanar o sagrado, e abusar do sexo e do erotismo, a desafiar a autoridade; voyeurs, provocam a "concupiscência do olhar. Os olhos -dizem os moralistas- resumem todos os sentidos: sentir e ver são uma só e mesma coisa. Portanto, é preciso evitar o olhar desejante que leva aos prazeres.
Não é por acaso que, de todos sentidos, a vista é o mais naturalmente culpado e punido. Não é por acaso também que o voyeur é uma das figuras mais comuns nos romances e na filosofia libertinas. Através do olhar desejante, o libertino conduz o espírito para além do que vê, abre caminhos para o mundo dos sentidos.
A partir daí, é impossível ficar indiferente: ao lado do sentido manifesto, ele pressente uma significação latente. Não que o romance libertino adote a alegoria ou a metáfora -muito pelo contrário. Através de cenas eróticas, os textos sempre anunciam um duplo movimento: a descrição de experiências sensíveis e a experiência do pensamento; a iniciação aos prazeres do corpo e ao prazer do conhecimento.
Nada mais superficial, portanto, do que atribuir ao movimento libertino apenas erotismo e sacanagens. Os libertinos representam muito mais do que imagina a crítica moralizante. Surgem como força cultural e política no século 17 em um mundo ao mesmo tempo místico e geométrico, matemático, racional, regido pela medida e pela ordem. Um universo cultural dominado pela ciência que considera os sentidos, os desejos e paixões coisas ilusórias e irracionais.
O triunfo da racionalidade e sua geometria das relações humanas pedem pois uma resposta radical dos libertinos: se a ciência e a moral burguesa tentam afastar a reflexão do mundo sensível, um pensamento mais exigente deve produzir o retorno dos sentidos. E é isso que o libertino faz: combate o idealismo religioso, testa os limites da razão e repõe a relação sentido-pensamento.
Começa, pois, com ele, esta estranha revolta: para lutar contra o mundo das aparências e das convenções, os libertinos -materialistas- partem daquilo que é mais evidente e mais aparente: o corpo.
A aventura do ciclo da Funarte com 22 conferências sobre o pensamento libertino vai além do senso comum: a partir de um olhar às vezes desafiador, outras vezes erótico e até mesmo aberrante para alguns, não queremos cometer nenhuma infidelidade ao verdadeiro trabalho de pensamento.
O pensamento exige excesso na sua trajetória: assim, a descrição de incessantes e incansáveis atos sexuais, que alguns apressados interpretam como pura repetição de sacanagens, não é senão a metáfora -a única possível para um libertino- de um eterno desvendamento do real.
Há uma força estranha em cada ato descritivo que leva sempre a uma interrogação filosófica. Cada véu retirado do corpo corresponde a um desvelar reflexivo: primeiro, o libertino é contra a moral e os costumes da aristocracia decadente e da burguesia em ascensão, cria um mundo que escapa do olhar reprovador e transa com naturalidade os objetos do desejo; não tem vergonha de descrever os prazeres.
Em seguida, vale interrogar se o libertino é o primeiro materialista dos tempos modernos: ao dar ao corpo uma verdadeira dimensão humana, dessacraliza o mundo e reconhece que o corpo é a coisa mais importante. Esta redução da moral, da ciência e da política a uma mecânica do corpo e dos prazeres do corpo (radicalidade insuportável para a igreja) tem endereço certo: o domínio da unidade mística e religiosa, "quimera nojenta, como escreve Sade, a contemplação, o idealismo ilusório de um olhar imóvel e purificado sobre o objeto desejado.
O libertino leva a crise da escolástica às últimas consequências. O uso materialista dos prazeres é a contrapartida da modulação geométrica e mística que era imposta.
Por fim, o libertino rompe as dicotomias vício-virtude, moral-imoral, certo-errado: seguindo a tradição epicurista, ele diz, por exemplo, que não há vício em si: o mal está em nós quando ele nos impede de gozar o bem-estar vital; as virtudes não são um fim; elas produzem um fim. Ou melhor, não há virtude sem prazer. "Goza, não há outra sabedoria; faz gozar, não outra virtude, escreve Senancour. O libertino cria seu sistema de sensações: é o começo, talvez inconsciente, de uma explicação do mundo "voluntariamente e sutilmente antropomórfica.
Mas, por fim, o que mais importa no movimento libertino é o seu caráter político: espíritos livres, livres-pensadores, alguns deles pertenceram à efervescente geração da Revolução Francesa, excepcionalmente reunidos por algum acaso: aqui, os libertinos estão no centro da controvérsia política e revolucionária, achincalharam o poder despótico, a corrupção dos costumes, combateram as superstições e a moral esclerosada, atacaram a tirania literária e a pureza dos artifícios poéticos.
Alguns dialogaram com os filósofos do seu tempo; outros foram pensadores da Enciclopédia. Mas todos eram, entre tantas coisas, até autores eróticos. Fecundaram espíritos, foram imitados, atravessaram fronteiras, mas só hoje estão tentando chegar ao Brasil.

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