São Paulo, terça-feira, 6 de junho de 1995
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Freira relata 'calvário' em Serra Leoa

JOSÉ MASCHIO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM LONDRINA

``Houve momentos horríveis, quando matavam a pauladas reféns que tentavam fugir ou quando as meninas eram estupradas por guerrilheiros", declarou a freira brasileira Hildegard Jacoby, 39, sobre o tempo em que ficou em cativeiro nas matas no interior de Serra Leoa, país da África ocidental.
Em entrevista à Agência Folha, ela falou dos 56 dias que ficou em poder de guerrilheiros da FRU (Frente Unida Revolucionária), que luta para tomar o poder no país.
Sequestrada em 25 de janeiro deste ano, foi libertada em 21 de março com as freiras italianas Lúcia Santerelli, 65; Angela Bertelli, 35; Agnesi Chiletti, 48; Tereza Bello, 41; Ana Mosconni, 58, e Adriana Marcili, 47.
Hildegard Jacoby está agora no Brasil recuperando-se do que chama de ``calvário na floresta".
Depois de visitar os pais em Teixeira Soares, no sul do Paraná, está em tratamento médico na sede brasileira da ordem xaveriana Missionárias de Maria, em Londrina (379 km ao norte de Curitiba).
Em Serra Leoa, metade da população é adepta de religiões tribais e 80% do restante são muçulmanos. Os católicos são uma minoria de 2%. Mesmo assim, ela quer retornar ao país, ``depois que a situação política se definir". A seguir, os principais trechos de sua entrevista.

O SEQUESTRO
Eu e mais três irmãs atuávamos no vilarejo de Masiaka (100 km a leste da capital Freetown, com 4.000 habitantes) e estávamos em Kambia (180 km ao norte de Freetown, com 8.000 habitantes) para uma reunião da ordem. Isso foi na passagem do ano.
Resolvemos ficar em Kambia, porque os guerrilheiros se dirigiam para a capital e pensávamos que não chegariam até lá. Mas chegaram. Não tivemos tempo de nenhuma reação. Conosco foram aprisionadas outras cem pessoas, a maioria adolescentes.
A CAMINHADA
Os guerrilheiros da FRU (Frente Unida Revolucionária), com 60 homens, nos renderam e destruíram a sede da polícia local e o rádio amador da cidade.
Iniciamos uma caminhada de aproximadamente 200 quilômetros até o acampamento rebelde.
No caminho iam matando, saqueando as aldeias e fazendo reféns, principalmente jovens, para recrutá-los para a luta.
Caminhávamos pela mata e uma tropa de frente ia abrindo caminho nas vilas. Quem não era preso era morto.
Foram seis dias e meio até chegarmos ao acampamento, no pé de uma montanha no norte do país.
A CONTAGEM
Depois do segundo dia, fiz um cordão com uma tira de pano e comecei a fazer nós para cada vila que passávamos.
Foram 52 até chegarmos ao acampamento. Fazia também outro nó maior para os mortos no caminho. Contei 15.
Depois um soldado rebelde me disse que tinham sido 29. Era horrível ver pessoas agonizando e deixadas abandonadas à própria sorte.
A VIOLÊNCIA SEXUAL
Nós, as irmãs brancas (ela e mais sete freiras italianas), não fomos importunadas. Mas as meninas e adolescentes reféns eram usadas pelos homens.
Na caminhada, quando ainda podíamos encontrar água para nos banhar, uma menina contou que fora "usada".
As que eram "usadas" podiam comer até duas vezes por dia e ganhavam roupas dos saques.
As que não aceitavam a violência sexual, recebiam o mesmo tratamento que nós: não podiam trocar de roupa ou se alimentar mais do que uma vez por dia.
A DIFERENÇA RACIAL
Os guerrilheiros só nos chamavam de brancas; não entendiam quando chorávamos a morte de um refém.
O comandante dos guerrilheiros, Gibrila, nos perguntava: ``Por que chora? Ele não é seu irmão, é preto".
Quando havia choques com as tropas do governo, os guerrilheiros berravam: ``Corram! Bala não escolhe cor, mata também os brancos".
OS GUERRILHEIROS
Já no acampamento, toda vez que um refém tentava fugir, era levado à frente das pessoas, amarrado e morto a coronhadas de fuzil ou pauladas.
Todos tinham que assistir aos assassinatos. Era a coisa mais brutal que se pode imaginar.
O COMANDANTE
No primeiro mês de acampamento, éramos até bem tratadas. Podíamos ouvir uma vez por dia a rádio BBC de Londres e as conversas do líder Gibrila com o comandante-geral da FRU, Foday Sankoh.
Um dia, ele pediu para falar com a brasileira. Eu não sabia o que falar para ele, o homem que nos prendia.
Mas ele disse que adorava o Brasil e que tinha amigos revolucionários do Brasil.
Aliás, em toda Serra Leoa eles amam o Brasil por causa do futebol. Na Copa do Mundo, não torciam pelos times da África, torciam para o Brasil.
TREINAMENTO LÍBIO
Os guerrilheiros da FRU foram treinados na Líbia e em Burkina Fasso. Usam como lema ``Saúde, Escola e Moradia", coisas que o leonês não possui.
Não são apenas muçulmanos, mas de todas as religiões. Tinha até guerrilheiro que vinha rezar com a gente na hora do terço, à noite.
DIA-A-DIA
Acordávamos às 8h. Tínhamos tempo de sobra para as orações individuais ou em conjunto. Só tínhamos 20 litros de água por dia para higiene pessoal.
Até 24 de fevereiro, ficávamos juntas e podíamos dividir uma tenda. Mas nos culparam pelo ataque do governo feito neste dia.
Perdemos a tenda, o rádio para ouvir a BBC e diminuiu a ração de comida.
Eu perdi 15 quilos durante o tempo de cativeiro. Perdemos também o direito a uma privada que haviam construído para nós. Nossas necessidades tinham que ser feitas no mato.
A gente usava um farolete para entrar na floresta. O dia parecia ser noite, pois a mata é muito fechada e quase não se via o Sol.
FOME E SOLIDARIEDADE
Só comíamos uma vez por dia. Podia ser às 11h ou à meia-noite. No dia seguinte ao ataque do governo, nem tivemos comida.
A refeição era arroz com um molho à base de água, folhas e peixe ou carne. Uma guerrilheira, chamada Mercy -que significa misericórdia-, nos trouxe um dia um pouco da ração de sua família. Foi a melhor refeição que tivemos. Era arroz com um molho consistente.
A ORGANIZAÇÃO
Os guerrilheiros se organizavam no acampamento em famílias. Era o soldado e suas mulheres e filhos.
Em Serra Leoa, a poligamia é uma tradição muito forte, o que inclusive dificulta o trabalho dos missionários.
Adolescentes e meninas violentadas pelos soldados se casavam com eles e ficavam fazendo parte da família.
DROGAS
Até 24 de fevereiro, eram comuns noites de muita briga entre os guerrilheiros. Em cada incursão que faziam, traziam uma droga que chamam diamba. Deve ser a maconha aqui do Brasil.
Eles socavam em um pilão, distribuíam entre eles e depois fumavam. Passavam as noites bebendo, fumando e era impossível dormir.
Depois do ataque do governo, isso mudou. Tivemos de sair do acampamento, mudar de lugar e foi proibido que fizéssemos cantorias.
O ATAQUE
O governo fez um ataque aéreo ao nosso acampamento em 24 de fevereiro. Os reféns e os guerrilheiros nos culparam pelo ataque.
Tivemos que dormir com um cobertor de estrelas e na relva. Não falavam mais com a gente e nos acusavam de espionagem. Foi o momento em que mais temi por nossas vidas.
A LIBERTAÇÃO
O comandante Foday Sankoh disse por rádio que queria nos libertar, mas temia que o governo nos matasse.
A irmã Adriana Marcili falou pelo rádio em um dialeto com o bispo de Makeni, Giorgio Biguzzi, para acertar o local em que nos deixariam.
Eles temiam que o governo captasse mensagens em inglês ou italiano. Eu senti, depois, que não havia muito interesse em nossa libertação por parte do governo de Serra Leoa.
Os guerrilheiros haviam conseguido o que queriam, mostrar ao mundo a situação de Serra Leoa.
O RETORNO
Seria imprudência retornar agora. Mas deveremos voltar a Serra Leoa depois de uma definição política. Os guerrilheiros da FRU diziam que nos queriam no país, ``mas não na atual situação".

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