São Paulo, terça-feira, 6 de junho de 1995
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O duplo apelo

ANDRÉ LARA RESENDE

Quando a tentativa de justificar a ética invocando a religião ou os costumes passa a ser vista como incompatível com a razão, o debate sobre a moral se torna interminável. Sem auxílio, a razão gira em falso, incapaz de encontrar terreno firme. Os valores são privatizados, personalizados; as virtudes tradicionais são minadas e o discurso público se torna operacional, voltado exclusivamente para os meios. Incapaz de concluir sobre fins, a razão ou se torna tecnocrática ou bem é afogada pelos sentidos.
A tese é de Alasdair Macintyre num livro de 1981, ``After Vitue". Segundo ele, esse estado das artes, que reflete o drama deste século, produz dois tipos de personalidades representativas: o esteta e o administrador. O esteta busca a satisfação dos sentidos sem estabelecer limites. O administrador manipula relações políticas, sociais, em busca do progresso e da estabilidade. As personalidades de nosso tempo incorporariam assim o impasse a que chegou o discurso moral.
O esteta e o administrador são idealtipos. Há, sem dúvida, pessoas cujas personalidades se aproximam dos extremos. Na maioria das vezes, entretanto, as pessoas oscilam, divididas pelo duplo apelo dos tempos modernos: o dever para consigo mesmo e o dever para com o mundo. Como reconciliar o dever privado com o dever público?
O tema é tão recorrente e onipresente quanto a literatura sobre ele é vasta e inconclusiva. Procuramos então uma resposta nas biografias de nosso século. Talvez vidas vividas tenham a resposta prática para o que parece conceitualmente irreconciliável. John Keynes, cuja excelente biografia por Robert Skidelsky teve o segundo volume publicado há pouco, é provavelmente o melhor exemplo dessa personalidade clivada. Uma vida extraordinária, dividida entre o esteta do grupo de Bloomsbury e o homem público de Whitehall.
Para os homens do século passado, a relação entre economia e cultura, entre riqueza e bem-estar, era relativamente simples e direta. Para Keynes, fina flor do outono de uma civilização e desbravador de uma nova era, a associação entre negócios, política, cultura e moral já não era tão simples e automática. Ele próprio, como não poderia deixar de ser, refletiu sobre o tema do dever privado e o dever público de forma recorrente ao longo de sua vida, tendo chegado à conclusão moderna sobre sua irreconciliabilidade.
A gravidade da crise que se seguiu à Primeira Guerra, com o desemprego maciço e persistente do início dos anos 30, terminou por levá-lo à opção predominante pelo público. Sem dúvida o mais influente economista deste século, seus trabalhos estão centrados no papel da incerteza e das perturbações causadas pelas questões monetárias. A estabilidade do nível de preços, como condição sem a qual o sistema de mercado perde suas propriedades auto-reguladoras, tema de seu primeiro livro, foi tese à qual se manteve sempre fiel.
No apagar das luzes deste século, sem a ameaça evidente de colapso do sistema de criação de riqueza, mas com os dramas e os desafios intactos, a incapacidade de ir além do tecnocrático e dar propósito à vida pública continua a provocar angústias privadas e perdas públicas.

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