São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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O novo populismo americano

ROBERTO CAMPOS

Em edição recente (03.03.95), a revista ``Businessweek" comenta o surgimento de um ``novo populismo americano". Trata-se de um movimento completamente distinto dos antigos surtos populistas no país, e também diferente dos conhecidos populismos latino-americanos.
Nos Estados Unidos, o populismo tradicional tinha profundas raízes agrárias. Já em fins do século 18, registravam-se coalizões de reformistas agrários no Middlewest e no Sul. Há quem atribua a Thomas Jefferson remota influência na gestação do populismo, que atingiu seu apogeu no fim do século passado. Jefferson defendia o individualismo e a liberdade, tipificados pela sociedade agrária. Favorecia o governo descentralizado, em contraste com o federalismo de Alexandre Hamilton, que enfatizava a noção de grandeza nacional por via do protecionismo industrial.
O populismo só se estruturaria formalmente mais tarde, em 1892, com o surgimento do Partido Populista. Este alargou sua base agrária para abranger trabalhadores e outros grupos. Priorização da agricultura e hostilidade aos banqueiros e trustes industriais do Leste eram as bandeiras do populismo do Middlewest. Os populistas favoreciam a expansão monetária e os juros baixos, advogando para isso o bimetalismo -o duplo padrão de ouro e prata- em vez do padrão ouro simples, que limitava a expansão monetária. Propunham um Imposto de Renda graduado, a propriedade estatal das ferrovias, e tarifas baixas de importação, visando a assegurar aos agricultores paridade com o comércio e a indústria. O apogeu do populismo ocorreu com a candidatura presidencial de William Jennings Bryan, derrotado três vezes, em 1896, 1900 e 1908. Era um orador brilhante e cáustico, que vergastava os banqueiros do Leste, acusando-os de oprimir o povo com uma ``cruz de ouro". O novo ``populismo americano" nada tem a ver com o antigo agrarismo. Reflete principalmente uma descrença em relação ao governo e vocaliza a sensação de insegurança criada pelo fracasso do Estado assistencialista, pela rapidez das mudanças tecnológicas e pelos vendavais da globalização econômica e financeira. As recentes ondas de imigração hispânica e asiática também avivaram pontos de fricção, pelo receio de perda de empregos.
Uma forma doentia do neo-populismo são as organizações de ``patriotas", que dizem amar o país mas odiar o governo. Este seria o grande inimigo, que quer tirar ao mesmo tempo o dinheiro da carteira, e a pistola da mão, dos patriotas. Essas reações desvairadas descambam para o terrorismo e o racismo, de que foi exemplo o massacre de Oklahoma.
Mas a frustração com a ineficácia do governo vem provocando também reações positivas. As tonalidades vão desde o ``reformismo moderado" dos democratas no poder até a desconstrução do Estado grande, advogada pelos republicanos. O presidente Clinton propõe uma ``reinvenção" do governo, com redução do funcionalismo e submissão das atividades governamentais a alguma forma de concorrência pelo setor privado. O Partido Republicano tem reações mais radicais. Quer extinguir três ministérios e diminuir drasticamente o escopo do governo federal, ao invés de apenas reengenheirá-lo. É a teoria dos três ``Ds", que há muito advogo para o caso brasileiro: descentralização, pela transferência de recursos e funções aos Estados e municípios; desestatização, pela máxima privatização possível de atividades; e desregulamentação. Numa atitude, que teria valor didático para nós, Newt Gingrich, o líder republicano no Congresso -que conseguiu aprovar num semestre nove das dez promessas do programa eleitoral republicano ``Contract with America"- propõe emendas constitucionais que exigiriam dois terços dos votos para qualquer aumento de impostos, tornariam mandatório o equilíbrio orçamentário, além de submeter qualquer nova regulamentação burocrática a um teste prévio de custos e benefícios. É uma reação ao paternalismo assistencialista e ao excesso de regulamentação ambiental.
A diferença cultural básica entre democratas e republicanos é que aqueles ainda acreditam num Estado benfeitor, capaz de eliminar a pobreza. Estes alegam que a pobreza é em grande parte obra do governo. O aumento da desigualdade resultaria basicamente do colapso do sistema educacional público, e da pletora de regulamentos anti-empresariais, desincentivadores da propriedade, nocivos à noção de responsabilidade individual, com corrosão dos valores familiares tradicionais. Os democratas querem um Estado mais eficiente. Os republicanos acham que o Estado mais eficiente é o Estado mínimo.
O populismo americano, em qualquer de suas formas históricas, tem pouco a ver com o populismo latino-americano. Este é um animal diferente. Assume várias peles e formatos -o justicialismo peronista na Argentina, o varguismo no Brasil, o socialismo de Allende no Chile, o militarismo esquerdizante de Velasco Alvarado no Peru. Mas há, subjacentes, algumas componentes comuns:
a desvinculação entre salários e produtividade, descambando na demagogia salarial.
a desvinculação entre custos e preços, levando a uma pletora de subsídios.
o protecionismo comercial, visando à substituição de importações.
o estatismo, traduzido na proliferação de monopólios e empresas estatais.
o nacionalismo, redutor da absorção de tecnologia e capitais estrangeiros.
o culto à personalidade do líder, que busca comunicação direta com as massas.
O populismo está em ocaso no continente. Na Argentina, paradoxalmente, foi um presidente peronista que se converteu à ortodoxia liberal; no Chile, o nocaute veio no governo Pinochet, cujas políticas econômicas sobreviveram à redemocratização; no Peru, foi Fujimori que abandonou o populismo em favor de reformas privatistas.
No Brasil, estamos finalmente pondo termo à era Vargas. Os historiadores do futuro, com melhor visão retrospectiva, dirão qual foi o momento preciso da ruptura. Para alguns, ela ocorreu na era Collor, com a abertura comercial e a Lei de Desestatização. Para muitos, a ruptura data da posse de Fernando Henrique em janeiro de 1995. Outros dirão que essa ruptura só se consumará quando for efetivamente iniciada a flexibilização dos monopólios estatais. Tenho para mim que os eflúvios varguistas persistirão até que seja desmontado o aparelho do sindicalismo fascista, e renunciarmos ao ridículo intervencionismo das leis salariais, leis de aluguéis ou de mensalidades escolares, que buscam, todas, substituir a lei da oferta e procura pelas normas do Diário Oficial.
Os dogmas estatizantes e dirigistas, assim como o irrealismo distributivista de Vargas, têm hoje como herdeiros mais articulados os petistas de Lula. Pela sua incapacidade de responder às transformações mundiais pós-muro de Berlim, o PT corre o risco de ficar com dimensão comparável à dos movimentos exóticos, como o dos verdes e dos gays. Com características bem menos pitorescas...
Perdidas as demais, às esquerdas brasileiras só resta uma bandeira: acabar com a ``exclusão" dos pobres, por via do governo benevolente. Mas está aí a cruel ilusão apontada pelos republicanos na América do Norte. Os governos habitualmente procuram corrigir a pobreza por métodos que obstaculizam a criação de riquezas: asfixiam o espírito empresarial pela alta tributação, pela excessiva regulamentação, e por leis trabalhistas que, visando a impedir despedidas, acabam desencorajando a contratação. Se a isso somarmos o fracasso da educação pública, verificar-se-á que o Estado é muito mais excludente que includente. Ou seja, como diz Henry Thoreau, é apenas uma conveniência inconveniente.

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