São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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O discurso fúnebre de Arendt sobre o filósofo

HANNAH ARENDT

Estamos reunidos para juntos e em público -o que ele tanto amou- nos despedirmos de Karl Jaspers. Queremos anunciar ao mundo que algo aconteceu, quando -muito velho e depois de uma vida inaudita, feliz e abençoada- ele o deixou. Assim como ele, ninguém falava mais e falou, nem tão cedo falará. Nisso medimos o que perdemos, embora não seja isto que importa. Afinal, valem as palavras de Goethe: "Pois a terra os gera de novo, como sempre os gerou". Importa que aqueles poucos que escutam e entendem esta linguagem não se tornem ainda mais reduzidos.
Seres humanos terrenos carecem da corporeidade. Mesmo os que conheciam apenas as obras e não a pessoa. Careciam da certeza de que havia alguém atrás dos livros -em Basiléia, na Ausstrasse- com viva voz e gestos. Pois apenas isto garantia que o que havia nos livros era realidade. E o que para alguém era realidade também deveria ser possível para todos os demais. Justo ele queria e podia ser um exemplo.
Naturalmente não me refiro a escrever livros. Os livros são expressão e sinal de um modo único de estar no mundo, de ser um homem entre outros homens. Aqui e ali surge entre nós alguém que realiza exemplarmente a existência humana e corporifica o que em geral só nos é dado conhecer como conceito ou ideal. Jaspers também manifestou em sua vida, de um modo inédito, a reunião entre liberdade, razão e comunicação. De certa forma, exemplificou em si mesmo esta reunião, para em seguida retomá-la e descrevê-la na reflexão, de tal forma que, desde então, não podemos mais pensar nos três separadamente, mas apenas como uma tríplice unidade.
Não estava destinado desde o berço a tornar-se filósofo em vez de psiquiatra ou político. Em várias ocasiões expressou a opinião de que, não fosse a doença, que determinou seu modo de vida, mas não a sua vida, jamais teria se tornado professor de filosofia. Quando dizia isso, eu sempre pensava naquela passagem da ``República", em que Platão, meio irônico, considera que o solo propício para a filosofia é realmente o exílio ou uma certa enfermidade ou, ainda, um país pequeno e insignificante, em que não seja possível distinguir-se pela ação. (Teria Platão se tornado filósofo se Atenas estivesse em uma situação melhor?)
Desde Platão não houve muitos filósofos para os quais a ação e a política tivessem representado uma verdadeira tentação. E Jaspers? Ele poderia ter dito, junto com Kant: como é doce dedicar-se a imaginar formas de governo; e, se ele não tivesse nascido em um país que misteriosamente arruinou, ou não deixou que os seus dons políticos vingassem e, não fosse ele doente, poderíamos facilmente imaginá-lo como estadista.
Finalmente, depois de 1945, fez-se justiça a este seu dom fundamental, tão forte quanto o dom filosófico. Por quase um quarto de século, ele foi a consciência da Alemanha. Que esta consciência tenha se estabelecido em território suíço, em uma república, um estado que é uma espécie de ``pólis", certamente, não se deve ao acaso. Ele nasceu para os costumes de uma república democrática e alegrava-se com as negociações conduzidas por este espírito.
Em todo caso, nada o deixou mais contente nos últimos anos quanto a concessão da cidadania suíça. Costumava dizer que, pela primeira vez, podia concordar com um Estado. Isto não era nenhuma recusa à Alemanha. Sabia que cidadania e nacionalidade não têm de coincidir -pois era e, naturalmente, permaneceu sendo alemão-, mas também sabia que a cidadania não é uma mera formalidade.
Nós não sabemos o que acontece quando morre um ser humano. Sabemos que ele nos deixou. Nós nos apoiamos em sua obra, embora saibamos que as obras não precisam absolutamente de nós. Elas são o que alguém que morreu deixou para trás, no mundo que existia antes que ele viesse e prossegue, quando ele o deixa. O que será das obras depende do curso do mundo. No entanto, o simples fato de que estes livros eram vida vivida, este fato não passa a fazer parte imediatamente do mundo e fica sujeito ao esquecimento.
Aquilo que, em um ser humano, é o que há de mais fugidio e ao mesmo tempo mais grandioso são a palavra falada e os gestos, que morrem com ele e carecem de nossa recordação e homenagem. A homenagem realiza-se pelo convívio com os mortos, do qual nasce um diálogo, fazendo-os novamente ressoar no mundo. O convívio com os mortos precisa ser aprendido e é o que estamos começando hoje, na comunhão de nossa tristeza.

Discurso de Hannah Arendt por ocasião da homenagem pública a Karl Jaspers, morto em 26 de fevereiro de 1969, prestada pela Universidade da Basiléia, no dia 4 de março de 1969

Traduções de LUCIANA VILLAS-BOAS CASTELO BRANCO

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