São Paulo, domingo, 18 de junho de 1995
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O pai do tecladista

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Todos se reuniram no gabinete e cantaram o ``Parabéns pra Você". Não era o aniversário dele, mas a aposentadoria, por ter atingido a idade limite. Há 15 anos era o diretor-geral do hospital, sua administração, de acordo com o orador que o saudou, tinha sido ``profícua".
Depois da saudação e da resposta (ele declarou que levaria perenes recordações de todos), cantaram o ``parabéns" porque não sabiam como encerrar a cerimônia. Os tempos eram de austeridade e não havia comes-e-bebes, o jeito foi cantarem e baterem palmas.
No dia seguinte, estreando a liberdade, ele decidiu que continuaria obedecendo a rotina dos 40 anos de serviço público. Acordou cedo, fez barba, tomou banho. Nem sequer estranhou quando, depois do banho, foi usar o desodorante. Apesar dos protestos do filho, tecladista num conjunto de reggae e militante de movimento ecológico, ele usava sprays, desses que estão acabando com a camada de ozônio. Nem reparou que, em vez do desodorante, usou o spray da espuma de barba, o sovaco ficou empapado de espuma, ele nem percebeu.
Vestiu-se como se fosse ao trabalho, despediu-se da mulher e da empregada. As duas pensaram -ou melhor, nada pensaram- que ele tinha algum compromisso nesse primeiro dia de disponibilidade. Tampouco nada pensaram quando o viram atracado numa gaveta do armário que havia no corredor, onde a mulher guardava o faqueiro doado pelo padrinho de casamento, 30 anos atrás.
Custaram a entender, ela e a empregada. Vestido como se fosse trabalhar, calmo, o dono da casa queria entrar dentro de uma das gavetas, onde havia alguns guardanapos da Ilha da Madeira.
Quando o seguraram, tentando impedir o impossível, verificaram que ele estava sujo de espuma de barba, mal comparando, parecia esguichar creme chantilly das axilas. Uma semana depois, ele continuava agarrado na gaveta, querendo entrar dentro dela. Ao psiquiatra que o atendeu, explicou: ``Se meu filho pode ser tecladista, tudo me é permitido".

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