São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 1995
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A âncora agrícola

PEDRO DE CAMARGO NETO

As recentes decisões tomadas pelo governo não equacionaram satisfatoriamente a grave crise que afeta a agricultura. Dois componentes do Plano Real afetam de maneira frontal a formação dos preços agrícolas: juros escorchantes e sobrevalorização da moeda. As medidas anunciadas, periféricas, pouco alteram a situação do setor.
Um ano de plano dispersou os preços relativos, sobrando para a agricultura a deflação. A média, conceito estatístico muito querido dos economistas, pode até estar bem. No entanto, a ponta da agricultura está naufragando, levada pela âncora agrícola.
A política monetária ataca diretamente a formação de qualquer tipo de estoque, especulativo ou não. Os estoques agrícolas, estruturais em função da característica sazonal do setor, são severamente penalizados, quando não inviabilizados, pelo nível de juros existente na economia.
São pouquíssimos os compradores para a recém-colhida safra. O grão a ser consumido no futuro sobrou na mão do agricultor. Os preços atuais descontam o escorchante custo financeiro necessário para carregar a colheita até o momento do consumo.
O Plano Real inclui um patamar de juros, inclusive no crédito oficial, incompatível com a produção agrícola. Na impossibilidade de repassar aos preços os custos financeiros da produção, o agricultor torna-se inadimplente quando mesmo pequena parte do capital investido é de terceiros.
A política cambial penaliza severamente o setor agropecuário. As exportações perdem na fonte importante parcela de sua renda. As importações afetam a formação de preços como em nenhum outro setor. Uma mercadoria perfeitamente ``tradable" tem tudo a perder. Acrescentem-se as distorções do mercado internacional agrícola e a falta de disposição do governo em utilizar instrumentos de salvaguarda e direitos compensatórios.
Analisemos as medidas anunciadas. A prorrogação, por um ou dois anos, de 20 a 30% da dívida é uma medida antes de tudo comercial. Qualquer agente financeiro reconhecendo as dificuldades de seu cliente oferece esta oportunidade, no intuito de receber o principal e manter o cliente solvente.
O manual de normas do crédito oficial inclui um artigo específico garantindo na teoria o que deveria ser regra na prática. A valorização política deste anúncio menospreza a inteligência do setor.
A alteração -destaque-se que somente para o futuro- do nível de juros do crédito oficial, reduzido da escorchante TR para a altíssima TJLP, representa um progresso excessivamente tardio. Mais ágil e organizado, o setor industrial antecipou-se, alterando há meses sua taxa junto ao BNDES. Desde o plantio alerta-se para a incompatibilidade da TR com a produção.
A TJLP continua imprópria para a tarefa de carregamento de estoques agrícolas no contexto de uma economia totalmente aberta e, em tese, estabilizada. Os próximos dias mostrarão que a medida é insuficiente à formação de preços e ao apoio à renda do setor.
O grande alarde com que anunciaram a promessa de oferecer juros fixos de 16% ao ano para o próximo plantio merece observações. Produção futura se garante com estabilidade de renda e credibilidade. Estava clara, mesmo óbvia, a rejeição da TR. A mudança é, antes de tudo, uma preocupação com o consumo e abastecimento futuro, pouco considerando a situação atual do produtor. Jogar a conta de estimativas pouco precisas de eventuais futuros subsídios em cima do setor é, no mínimo, lamentável.
No caso agrícola, as medidas econômicas de hoje afetarão a produção e o abastecimento futuros, assim como a abundância de hoje é fruto da credibilidade do passado. O tempo da produção agrícola é diametralmente oposto ao dos derivativos financeiros. Os timoneiros do governo podem até entender de âncoras monetária e cambial; porém, não desataram o nó das amarras da âncora agrícola.

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