São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Do pêndulo à perplexidade

ANDRÉ LARA RESENDE

Em seu artigo de sábado nesta coluna, d. Luciano volta a um tema difícil e recorrente: a incompatibilidade entre os valores modernos e a possibilidade de fazer o bem. Segundo ele, a busca do lucro a todo custo e a aceitação sem questionamento das normas do livre mercado leva à acumulação doentia de bens materiais e à deterioração moral.
O julgamento da busca do lucro e do interesse próprio tem passado por grandes oscilações ao longo dos últimos séculos. A própria palavra interesse foi inicialmente um eufemismo para o juro, utilizada para tornar legítima a atividade de empréstimos remunerados, durante muito tempo considerada pecado de usura.
Passou em seguida por períodos de prestígio, vista como a chave para o estabelecimento de uma ordem social pacífica e geradora de progresso. Inicialmente apresentado como um extraordinário paradoxo, Mandeville, David Hume e Adam Smith, entre outros, resgataram de forma definitiva a busca do interesse próprio como a melhor forma de se chegar ao bem comum. Tinha-se encontrado finalmente a justificativa racional para se eximir de todo e qualquer eventual sentimento de culpa por não servir diretamente ao bem público.
Durante o século 17 e parte do século 18, o comportamento comercial, guiado pelo interesse individual, foi visto com melhores olhos do que o comportamento dos senhores feudais, ditado pela violência das paixões. A revolução comercial burguesa, além de ser vista como motor do progresso, foi creditada com a capacidade de abrandar as paixões e polir o comportamento. Chegou-se a acreditar que a força do interesse individual poderia servir de melhor freio ao comportamento passional do que os tradicionais apelos ao dever, à moral e à religião. Foi preciso a explosão de violência da Revolução Francesa para que aparecessem as primeiras dúvidas.
Durante o século 18, no auge do prestígio intelectual da Mão Invisível, o encanto com a busca do interesse individual começou a ser enfraquecido pelo ressurgimento de uma visão mais favorável dos sentimentos, das emoções e da generosidade. O século 19 foi palco de uma reação nostálgica que deu margem a movimentos como o romantismo. Surgiram as primeiras críticas ao caráter subversivo dos valores a que estaria associada a busca do lucro. A crítica à sociedade capitalista tomou corpo, com ênfase nas iniquidades e nas forças destrutivas deslanchadas por uma sociedade baseada exclusivamente no interesse individual.
O século 20 viveu apogeu do otimismo quanto às possibilidades do materialismo socialista. Hoje, o marxismo -a mais agressiva e bem-estruturada crítica ao capitalismo- se transformou num retumbante fracasso prático, tão ou mais injusto e infinitamente mais restritivo da liberdade humana do que o próprio capitalismo. Estamos tomados por dúvida e perplexidade. Será possível, como quer d. Luciano, compatibilizar o progresso com uma sociedade que ponha a realização das pessoas acima dos bens materiais?
A economia de mercado bem-sucedida exige, ao lado do espírito empreendedor, uma alta taxa de poupança. Menos incompatível do que pode parecer com o uso moderado dos bens materiais, a redução do consumo e a vida sóbria e simples que prega d. Luciano. Razão para esperança?

Texto Anterior: Negócios à parte
Próximo Texto: OS DONOS DO PODER; BURACOS À VISTA; DOAÇÃO DE ÓRGÃOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.