São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 1995
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Exibição centenária mostra corpo moderno

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

``Identidade e Alteridade", a exposição central da edição centenária da Bienal de Veneza (que vai até 15 de outubro), é uma das mostras mais interessantes desta primeira metade de década.
Mas, a julgar pelo que os jornais escreveram e o meio artístico praguejou, o crítico francês Jean Clair, curador do evento, passará à história como mais um simples conservador, indigno de atenção maior. Ou mesmo um ``reacionário", como dizem alguns.
Mas Clair é um conservador provocante e corajoso. ``Identidade e Alteridade" é, em resumo, uma história da figura humana na arte de 1895 até hoje. Difícil imaginar ponto mais interessante.
Basta pensar que a arte moderna começou com a ``Olímpia" (1856) de Manet -o retrato de uma mulher deitada, que extrai seu fascínio da mescla de desafio e sedução que existe naquele olhar, naquela pose e naquela cor de pele.
Logo, a polêmica é boa. A pesquisa, além disso, é excelente. Clair reuniu de Edgar Degas a Francesco Clemente, passando por Otto Dix, Munch, Picasso, Matisse, Malevitch, Miró, Giacometti, Bacon, Dubuffet e muitos outros.
Com essa linhagem, mostra por exemplo que o inglês Lucian Freud, 73, não é um anacronismo na arte; que, apesar de pintar figuras com contornos claros, é um artista contemporâneo, sim, tanto quanto artistas conceituais como Joseph Beuys ou Bruce Nauman.
A sequência da visita é cronológica, mas na maioria das salas foi inserido um exemplar da arte recente, como que apontando a tradição. Outro contraponto é feito com objetos que ilustram as teses científicas do período histórico abrangido naquela sala.
O primeiro período foi batizado de ``A Era do Positivismo" (1895-1905). O foco central da leitura é dado pela justaposição de uma tela de Degas, ``Fisionomia de Criminosos" (1880-81), às ilustrações de criminologia de Alphonse Bertillon.
A associação é clara: a crença positivista na existência de leis naturais que expliquem o mecanismo do corpo humano, ``incluída" a alma, teria a ver com a visão do corpo humano obtida por artistas como Degas e Rodin.
Tal pretensão de conhecimento, seguindo a exposição, se mostra falha. Na seção seguinte, ``A Incoerência da Vanguarda" (1905- 1915), o corpo deixa de ser um campo a desvendar e se torna assustador, estranho, grotesco, como no expressionismo alemão.
Na terceira, ``Em Direção a um Novo Homem?" (1915-1930), ele se torna máquina, um objeto ideal (como no futurismo), ou campo de guerra, sujeito a deformações e fragmentações (como na série de desenhos de feridos no front).
O mesmo se repete, em grau mais dramático, na seção ``Artes Totalitárias e Arte Degenerada" (1930-1945), em que imagens consagrando o ditador Mussolini convivem com os auto-retratos sombrios de Max Beckmann e o surrealismo de Ernst e Miró.
Esse dualismo desemboca e se dilui no ``Período do Pós-Guerra" (1945-1962), quando artistas como Jackson Pollock e Jean Dubuffet sugerem figuras que somem e outros como Alberto Giacometti e Willem de Kooning mostram figuras que se consomem.
Mas aí, segundo Clair, vem ``O Retorno do Corpo" (1962-1985), em que Georg Baselitz, Philip Guston, R.B. Kitaj, Avigdor Arikha, Lucian Freud e David Hockney conseguem voltar a olhar para o corpo e, com todos os seus defeitos e esquisitices, tratá-lo com humor, aceitação e até lirismo.
Essa é, em suma, a linha dupla em que ``Identidade e Alteridade" se desenrola no Palácio Grassi: entre o realismo e o desespero. Já no Museu Correr, onde está a seção final da exposição, ``O Corpo Real e Virtual" (1985-1995), o desespero leva surra do realismo.
É uma morbidez só: fotos de crianças com defeitos genéticos (de Nancy Burson), fotos ampliadas de pústulas (Jeanne Dunning), pinturas escatológicas de mulheres defecando (Wei Liu).
Clair tem vários defeitos: seu eurocentrismo (faltam muitos norte e sul-americanos) e, claro, sua rejeição da arte abstrata. Mas o problema maior está em ele acreditar que o ``espírito de época" explica toda estética.
No caso da última seção, ele considera que a moda da tecnologia virtual e a engenharia genética são motivos suficientes para ver o corpo humano como um território de manipulação e horror.
No geral, para Clair, a história da figura humana na arte do século 20 é a do reconhecimento de todas as imperfeições e deformações do corpo, as quais são reflexos de uma sociedade que sempre tendeu a anular a afeição genuína e a realização sexual. Esses franceses vêem perversão em tudo.
Só que a própria exposição abala esse reducionismo. Clair se revela melhor curador que crítico.
Diante da malícia suave da tela ``O Jogo de Cartas" (1948-50), de Balthus, em que dois jovens praticam o jogo amoroso entre olhares oblíquos e cartas à mesa, você se conforta: a modernidade não é assim tão desumana.

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