São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vamos aplicar a lei

ODED GRAJEW

No recente episódio da greve dos petroleiros, houve um grande clamor contra os sindicalistas da categoria que desrespeitaram a decisão do Tribunal Superior do Trabalho que decidiu pela ilegalidade da paralisação.
O governo, várias lideranças e formadores de opinião pública disseram que lei e decisão judicial devem ser cumpridas, pois são as bases do regime democrático. Concordo, embora quero lembrar que a escravidão, a discriminação de raças e credos religiosos, a censura, a restrição de liberdades políticas e individuais e outros atentados aos direitos do homem já foram (e ainda são em diversos lugares do mundo) embasados em lei e respaldados pelos tribunais.
O governo também afirmou e o tribunal confirmou que o compromisso anterior assumido pelo presidente Itamar e seus ministros não teria validade porque não preencheu todos os requisitos burocráticos legais. Desconsiderou-se o aspecto ético. Estamos todos liberados para assumir compromissos, fazer promessas escritas e verbais e desrespeitá-las desde que haja alguma falha legal. Por exemplo, todos os candidatos eleitos estão descompromissados de cumprir suas promessas de campanha.
Mas vamos assumir a hipótese, com a qual concordo, de que enquanto estiverem em vigor, a lei e a justiça devem ser obedecidas. Por que então Humberto Lucena, que foi condenado pela Justiça, foi anistiado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso? A razão alegada foi o respeito aos congressistas que passaram por cima da decisão judicial e anistiaram um dos seus companheiros.
O mesmo critério (com o qual não concordo) deveria então ser adotado em todos os casos. Por exemplo, os petroleiros deveriam ser julgados pela CUT (Central Única dos Trabalhadores). Ou se quiserem, no mínimo pelo Congresso Nacional. Ao anistiar Lucena, respeitando a decisão do Congresso, porém desrespeitando uma decisão judicial, o presidente abriu um precedente colocando uma decisão do Legislativo acima de uma decisão do Poder Judiciário que perderia dessa maneira seu caráter de árbitro supremo.
Não devemos também perder nosso senso crítico e aceitar qualquer decisão dos tribunais como expressão da verdade absoluta. Fernando Collor de Mello foi recentemente inocentado pelo Supremo Tribunal Federal das acusações de corrupção. O leitor deste artigo acredita sinceramente na justiça desta decisão?
Mas vamos retomar a hipótese, que novamente, quero reafirmar, conta com o meu apoio, de aplicar a lei e obedecer a justiça como princípios indiscutíveis e fundamentais para a consolidação da democracia no nosso país. Vamos todos levar a sério esta premissa, principalmente nossos governantes que foram eleitos pelo povo e devem dar o exemplo cumprindo a lei e obedecendo a Justiça.
Por exemplo: que tal começar a estabelecer ``um salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às necessidades vitais básicas dos trabalhadores urbanos e rurais e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo" (Constituição brasileira, capítulo 2, artigo 7º)? Certamente esse salário mínimo não é nem de longe de R$ 100 por mês.
Outro dispositivo constitucional que está sendo objeto de muita discussão atualmente é aquele que estabelece que ``as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a 12% ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar (Constituição brasileira, capítulo 4, artigo 192).
Muitos afirmam que a aplicação deste dispositivo é impraticável e danosa à economia e à sociedade brasileira. Sem querer entrar no mérito da questão, que é muito complexa, apenas quero alertar sobre o perigo e a incoerência de acharmos que existem leis que devem ser aplicadas com todo o vigor (que foi o discurso no caso da greve dos petroleiros) e outras que devem ser ignoradas.
Outra lei interessante que podemos procurar cumprir é a lei nº 8.069, de 13/7/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). No seu artigo 54, determina que ``é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente ensino fundamental, obrigatório e gratuito e o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero à seis anos de idade". No Brasil apenas 15% das crianças conseguem vaga em creches.
O artigo 60 da mesma lei determina que é ``proibido qualquer trabalho a menores de 14 anos de idade". Atualmente, 3 milhões de crianças abandonaram a escola e são forçados a trabalhar em condições de semi-escravidão sofrendo danos físicos, mentais e intelectuais irreparáveis. Apesar de todas as denúncias, o governo pouco faz para eliminar esta barbárie.
Ao folhear nosso Código Penal, nossa Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o leitor tomará conhecimento das inúmeras obrigações legais dos nossos governantes. Ao tentar aplicar apenas algumas leis estamos aceitando a discriminação e a injustiça, que foram a base de construção de nossa sociedade e que colocaram o Brasil na vergonhosa situação de um dos países com pior desempenho em relação ao grau de desenvolvimento humano de seus habitantes.
Quero relembrar que todos os deputados e senadores comprovadamente envolvidos em casos de corrupção, conforme demonstrado publicamente pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Orçamento, estão soltos e ricos, e nossas prisões estão repletas de ladrões de galinhas. Se o presidente da República, todo o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário usassem a mesma energia e determinação que usaram na defesa da determinação judicial no caso da greve dos petroleiros para colocar em prática todas as nossas normas constitucionais, leis, determinações judiciais e casos notórios de impunidade, certamente estaríamos vivendo num país mais justo, mais decente e plenamente democrático.
Apenas dessa forma estaria cumprido o artigo 5º da nossa Constituição que declara: ``Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza."

Texto Anterior: A responsabilidade penal da criança e do jovem
Próximo Texto: Sebastião Salgado; Critérios; Juros de 12%; Bresser Pereira; Monopólio; Política salarial; TV Cultura; Lição indígena; Janio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.