São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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A cigarra e o produtor de leite

SEBASTIÃO TEIXEIRA GOMES

A fábula da ``cigarra e a formiga" retrata bem o que está acontecendo atualmente no setor da pecuária de leite nacional.
Segundo a fábula, no verão, com abundância de alimentos na natureza, enquanto a cigarra vivia apenas a comer e a cantar, a formiga comia mas também trabalhava arduamente, armazenando alimentos.
Com a chegada do inverno, os alimentos na natureza foram escasseando para desespero da cigarra que, com fome e frio, foi pedir socorro à formiga.
Protegida em seu ninho, a formiga não padecia da falta de alimentos. Comia o que havia antes estocado.
Antes de ajudar a cigarra, a formiga aplicou-lhe uma boa lição sobre as consequências de sua imprevidência.
A fábula infantil serve para ilustrar o que está acontecendo no setor da pecuária de leite no Brasil.
O produtor de leite vive, hoje, o correspondente ao período de verão da história da cigarra e a formiga.
A combinação de alguns acontecimentos elevou o preço do leite ao nível de 1975, ano de ouro da pecuária leiteira nacional.
As causas da elevação do preço do leite estão relacionadas com o Plano Real e com as importações de leite em pó.
O Plano Real, implantado no ano passado, favoreceu esse aumento devido a dois fatores:
1 - aumento da demanda, especialmente das faixas mais pobres da população, que tiveram acesso a produtos até então inacessíveis;
2 - o prazo de pagamento do leite, que eliminou a perda do produtor.
Em relação às importações de leite em pó, elas ficaram mais difíceis neste ano, em razão do elevado preço no mercado internacional e da manutenção do imposto de importação em 33%.
Para aumentar ainda mais a felicidade do produtor de leite, o preço da ração concentrada está baixo, o que significa menor custo para a alimentação do rebanho.
A combinação do alto preço do leite com o baixo preço da ração concentrada transformou a atividade leiteira no melhor negócio do setor agropecuário.
O período de felicidade fez com que o produtor de leite ficasse anestesiado, sem se preocupar com o que poderá acontecer no futuro. E isso, convenhamos, não é nada bom.
Para que essa alegria permaneça, o produtor deverá atuar em duas frentes, uma individualmente e outra em conjunto com outros pecuaristas.
A primeira diz respeito a melhorias em seu sistema de produção, buscando sempre maior produtividade e eficiência.
Já a segunda refere-se à melhor estruturação do mercado de leite.
Em outras palavras, o produtor deve agir, em fatores internos e externos à propriedade, na busca de manutenção do bom negócio.
Na estruturação do mercado de leite, o ponto-chave é a cota de produção.
Aliás, sobre essa cota existem mitos criados por alguns industriais ou por seus representantes, os quais precisam ser esclarecidos.
O primeiro mito diz que, com o preço do leite liberado do tabelamento do governo, não deve existir cota.
Isso é a negação do que acontece em praticamente todo o mundo.
Em países com pecuária leiteira especializada, por exemplo, as cotas não só existem, como também há enormes penalizações para quem não as cumpre.
O segundo mito diz que a indústria não pode prometer honrar a cota numa economia tão instável como a brasileira.
A explicação é que se torna difícil prever o comportamento do mercado.
Realmente, isso é verdade para o mercado de alguns derivados do leite, como o do queijo, cujo consumo é muito sensível às variações de preço e de renda.
Entretanto, o mercado do leite pasteurizado é bem mais estável, com comportamento previsível e pequena margem de erro.
Pelo menos para o mercado de leite fluido é possível estabelecer cota e honrá-la, mesmo porque o ajustamento da indústria, face à instabilidade da economia, pode ocorrer no leite-excesso.
O terceiro mito diz que a prática da cota beneficia uma minoria de produtores, cuja produção tem pequenas variações no ano.
Em realidade, a cota é por produção e não para alguns produtores.
Evidentemente que aqueles com produção estável durante o ano são mais beneficiados com a política de cota.
Isso porque o objetivo da cota é premiar o produtor especializado, contribuindo para a modernização da atividade leiteira.
Retornando à fábula da cigarra e a formiga, o que deve ser ``armazenado" agora é uma boa negociação (se possível, registrada em contratos) sobre a cota de produção, que está sendo formada nos meses de junho, julho, agosto e setembro, na maioria das regiões produtoras de leite do país.
Para viabilizar a cota, na próxima safra, o recomendável é que ela seja segmentada de acordo com o destino da produção.
Assim, é possível formar cota-consumo (para o leite pasteurizado) e cota-indústria (para derivados).
Dada a estabilidade do mercado de leite pasteurizado, pode-se negociar agora uma relação entre os preços ao produtor e ao consumidor.
Para facilitar o entendimento é apresentado, a seguir, um exemplo, com números hipotéticos que devem ser adaptados às diferentes realidades do país.
Um produtor tem a produção média diária, nos meses de junho a setembro, de cem litros de leite, sendo essa a sua cota total.
Nesse período, a indústria para a qual ele vende o leite (seja ela cooperativa ou laticínio particular) coloca no mercado 70 litros por dia, como leite pasteurizado, e o equivalente a 30 litros/dia, como derivados.
Isso significa que o produtor tem 70 litros/dia de cota-consumo e 30 litros/dia de cota-indústria.
Em determinado mês da próxima safra, esse produtor entrega à indústria 180 litros/dia, cujo pagamento deve ser assim segmentado: a) 70 litros/dia ao preço do leite cota-consumo, que poderá ser atrelado ao preço pago pelo consumidor (60% desse preço, por exemplo);
b) 30 litros/dia ao preço do leite cota-indústria, que dependerá do mercado naquele mês.
A seguir, é determinada a média ponderada dos preços do leite-cota (consumo e indústria), que servirá de referência para o preço do leite-excesso; e c) 80 litros/dia ao preço do leite-excesso, que não poderá ultrapassar determinado percentual da média dos preços-cota, por exemplo, 50%.
Na operacionalização desse modelo, pode-se aumentar a segmentação da cota, dependendo da realidade de cada mercado.
Pode-se ter, por exemplo, cota para leite pasteurizado, para leite longa vida e para derivados.
Hoje em dia, com o uso generalizado do microcomputador, os cálculos são simples e rápidos.
Outra questão que também pode ser adaptada diz respeito aos percentuais do mercado de cada derivado, que no exemplo anterior se referem apenas aos meses formadores da cota.
Negociações para a cota e sua segmentação, de acordo com o destino da produção e, principalmente, com a estabilidade dos mercados de leite e derivados, devem ser realizadas urgentemente.
Isto porque, as previsões para o início do próximo ano são preocupantes para o produtor.
Tudo indica que haverá grande excesso de produção e depressão de preços na próxima safra.
Aí, com certeza, a indústria não terá o mesmo comportamento da formiga que, após aplicar uma boa lição à cigarra pela sua imprevidência, a convidou para entrar em seu ninho, abrigando-a do frio e saciando-lhe a fome. É esperar para ver.

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