São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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Tony Kushner expõe a crise do milênio

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

O americano Tony Kushner, 38, é o autor de ``Angels in America", a peça que mudou a cara do teatro na virada dos anos 90. Com muito atraso, ela estréia no dia 14 de julho no Brasil, em São Paulo.
Com ela vem um movimento do teatro na direção da recuperação do texto e do autor, na direção do envolvimento político, com temas como o nacionalismo, o multiculturalismo, religião, sexo.
Em pouco tempo, alcançou tal repercussão que já é dada como parte do ``cânone ocidental". É a pergunta que inicia a entrevista com Tony Kushner, a seguir.

Folha - ``O Cânone Ocidental", o livro com as maiores obras escolhidas pelo americano Harold Bloom, abre com Shakesperare e termina com você e ``Angels in America". Em 95, quatro anos depois da estréia da peça, ela já foi realmente canonizada?
Tony Kushner - Espero que não. Eu não acredito, na verdade, no cânone ocidental, portanto... Quer dizer, foi muito amável da parte dele, e eu admiro o seu trabalho e, portanto, estou contente de que goste da peça. Mas não tenho qualquer ambição de canonização. Se há realmente um cânone, no sentido de um corpo de literatura que ainda é de interesse, digamos, cem anos depois de ser estudado, você tem que esperar até cem anos depois para decidir.
Não há um processo de eleição para um cânone, além daquele de quando as pessoas retornam a um texto mais e mais vezes. Então é porque existe algo que continua verdadeiro e útil. Se isso é verdade ou não sobre ``Angels in America", eu não tenho a menor idéia.
Certamente não é a razão por que eu escrevo peças. Se as pessoas escrevem para a eternidade, elas tendem a fazer peças chatas. As peças que eu julgo mais interessantes são as que foram escritas para o momento presente.
Isso é verdade até sobre Shakespeare. As suas peças são profundamente ligadas à política jacobina. Ele não escreveu para entreter as pessoas do final do século 20. Se ainda o faz, é porque é um grande autor. Mas eu não tenho idéia se alguém vai prestar atenção à peça daqui a 15 anos. Eu apenas... Eu não posso me preocupar com isso.
Folha - Você não se vê, portanto, como parte do ``establishment" do teatro, hoje.
Kushner - Bem, eu sou parte de um ``establishment" a esta altura, só pelo sucesso da peça e pela atenção que recebeu. Ela certamente me levou a uma posição de proeminência, pelo menos no teatro americano. Mas, novamente, essa não foi a razão por que eu escrevi ``Angels in America".
Folha - O crítico americano Eric Bentley escreveu há 50 anos que era quase inconcebível que uma peça pudesse satisfazer à crítica mais rigorosa e também ser popular. Você tornou isso possível outra vez?
Kushner - Eu não sei... Eu não sei se eu concordaria com isso. Quer dizer, quando você pensa... Isso está no livro ``O Dramaturgo como Pensador"?
Folha - Sim.
Kushner - É... Quer dizer, quando você pensa nas peças que foram escritas desde então... Eu acho que é verdade que não há muitos que se ajustariam àquele modelo, mas pouco depois que o livro foi escrito Tennessee Williams fez ``Um Bonde Chamado Desejo", e Arthur Miller fez ``A Morte do Caixeiro Viajante", e ``A Longa Jornada Noite Adentro", de Eugene O'Neill, já estava sendo escrita. Certamente são três peças que se sustentariam nos dois critérios, de sucesso popular e que estão entre as maiores peças jamais escritas. Isso só na América.
Na Inglaterra, só Deus sabe, houve quatro ou cinco realmente importantes. Na França, na Espanha, com Fernando Arrabal. Essa é uma afirmação problemática... Ah, claro, estou deixando Samuel Beckett fora. Muita gente vem escrevendo peças interessantes.
Quanto à questão sobre se ``Angels" merece uma atenção erudita séria, é algo que tem que esperar por um ``scholar" (erudito). Ela já está sendo ensinada em várias universidades. Eu sei de algumas teses que foram escritas sobre ela. E alguns ``scholars", digamos, importantes estão pensando sobre ela. Eu não sei o que vai acontecer, como resultado.
Folha - E o que eles dizem?
Kushner - Até aqui... Bom, para ser franco, eu não li nada do mundo dos ``scholars" que... Quer dizer, o que é desapontador é que o que a peça pode estar mostrando está mais para uma crise no estudo dramático do que na literatura que esse estudo está examinando.
Eu sinto que a peça é examinada por ``scholars" cujo entendimento do teatro é muito limitado. Há um grande número de pessoas que gostaram, mas elas tentaram fazer coisas... Houve muita coisa sobre simulacro e realidade virtual (ri) e um novo tipo de experiência religiosa que seria toda simulada. É um pouco estúpido dizer isso sobre uma experiência de teatro. Isso é como torturar a peça.
Mas há um ``scholar" judeu muito importante que está realizando um seminário este ano, em Los Angeles, sobre ``Angels", considerando a peça um texto especificamente judeu. Eu estou muito interessado, muito curioso em ver o que vai sair daí.
Folha - O poeta brasileiro Wally Salomão, que surgiu do movimento dos anos 60 na Bahia, acusou ``Angels in America", num programa de televisão de que eu participei, de não ser mais do que uma comédia de costumes. Você já ouviu esse tipo de crítica antes?
Kushner - Comédia de costumes... Bom, eu não vejo isso como uma crítica particularmente devastadora. ``A Importância de Ser Prudente" também é. Então, não sei, eu não penso que seja a pior coisa que alguém possa falar sobre a peça. Eu acredito que é uma avaliação inepta e inexata. A peça é mais uma comédia do que qualquer outra coisa, mas eu não sei, quanto a ser uma comédia de costumes. Se ele está dizendo que não é politicamente séria o bastante, eu certamente discordaria.
Folha - Ele dizia que a peça não tem uma experimentação formal...
Kushner - Bem, não é teatro experimental. Ela está completamente dentro da tradição do realismo narrativo americano. Eu não creio que haja uma tradição... Ele precisa reconsiderar as suas categorias. A relação da peça, quanto à forma, é com aquela de Williams e O'Neill. Eu tenho uma grande admiração por quem faz teatro experimental. Alguns dos melhores momentos que eu tive no teatro aconteceram assistindo trabalhos de teatro experimental.
Mas eu simplesmente não tenho nenhuma aptidão para aquilo. Eu sou um contador de histórias. É o que eu mais gosto de fazer. Das coisas que eu faço, é aquela que eu faço melhor. Portanto, é a tradição em que eu trabalho. A esta altura, eu não acho que exista qualquer obrigação absoluta para as pessoas trabalharem exclusivamente com formas experimentais não-narrativas. O teatro experimental, pelo menos neste país, está numa crise violenta.
Folha - Como ela se dá?
Kushner - Eu sinto que sempre houve, na forma não-narrativa, um conflito político com a história. Sempre foi muito difícil, sem uma história, examinar a história de modo coerente. E eu penso que especialmente na América, onde a causalidade, a visão de que algo acontece e depois tem consequências, é difícil de ser compreendida, há um grande potencial radical no contar-histórias.
A idéia de que algo acontece e de que então algo acontece em consequência daquilo é um ponto útil a levantar junto ao público americano. Porque o público americano não entende, por exemplo, se você corta impostos e pontes caem. É importante lembrar a eles que este é basicamente o jeito em que o mundo funciona. Então, seria essa a minha única resposta ao poeta, porque de outra forma eu não entendo o que ele quer dizer. Mas todo mundo já fez alguma crítica vaga sobre a peça, e ele é bem-vindo para fazer a sua.

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sobre Tony Kushner às págs. 5-6 e 5-7

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