São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 1995
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'Abraço completamente a correção política'

DA REPORTAGEM LOCAL

A seguir, a sequência da entrevista com o autor americano Tony Kushner.

Folha - Você falou da sua ligação com a tradição realista de Williams e O'Neill, mas é mais fácil encontrar pontes entre o seu trabalho e o do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, em termos de teatro político. Como foi que Brecht influenciou a sua dramaturgia, em ``Angels"?
Kushner - Ele é a minha maior influência. Quando me apaixonei pelo palco, eu não conseguia ver nenhuma maneira de ser um artista de teatro e estar seriamente envolvido politicamente. E Brecht, quando eu finalmente encontrei Brecht, apontou o caminho para fazê-lo. Ele fez isso pelo exemplo, como um artista sério de teatro e ao mesmo tempo profundamente comprometido com uma luta política, pela qual eu tive e tenho grande simpatia, e com peças como ``Mãe Coragem". Foi o que me fez decidir entrar para o teatro e ser um dramaturgo.
Folha - E ele era popular.
Kushner - Ele era. Novamente, alguém que esteja trabalhando na tradição que eu... Quer dizer, Brecht, no início dos anos 30, antes de ir para o exílio, começou a se aproximar de um teatro não-narrativo experimental, apesar de ter sempre como objetivo um teatro que fosse popular.
Quer dizer, uma grande dificuldade com o teatro experimental que nós vemos neste país é que o teatro experimental tende a atrair um público extremamente rarefeito, o que se torna problemático, se você está pensando em termos de tomar parte de uma grande luta política. Mas quando Brecht deixou a Alemanha e começou a escrever, você sabe, as peças clássicas, ele trabalhou numa tradição de épico e narrativa que eu acredito ser paralela à minha.
Folha - Você já descreveu ``Angels in America" como um manual de sobrevivência para os gays na América...
Kushner - Eu fiz isso? Eu não posso acreditar.
Folha - Três anos atrás. De todo modo, você vê o seu trabalho como político, em termos de uma política homossexual?
Kushner - Bom, não é um manual, mas certamente a minha intenção... Quer dizer, o que se faz é simplesmente escrever sobre o que preocupa você, confunde você, sobre os pontos na sua própria vida onde estão as maiores contradições, e as menos resolvidas, as áreas onde estão as experiências, e isso tende a produzir as melhores e mais interessantes e excitantes e dramáticas peças.
A esperança deve ser que as peças sejam úteis, politicamente, embora eu não acredite que você possa escrever com esse fim. Se isso acontece, é por conta do acaso. Mas quando acontece, e realmente aconteceu com ``Angels in America", com a peça tornando-se útil a um movimento político, e um movimento do qual eu participo e de cujo sucesso depende a minha felicidade, é uma coisa maravilhosa. Eu não saí para dizer, ``ah, eu vou mostrar aos gays como sobreviver", mas eu queria falar do sentimento de estar vivo na América de Ronald Reagan, sendo gay, homossexual.
Folha - Você vê a peça como politicamente correta? E o que PC significa para você?
Kushner - Bem, eu espero que ela seja politicamente correta e eu abraço completamente a idéia de que as pessoas devem esforçar-se por ser politicamente corretas -o que eu acredito que a direita tentou transformar num rótulo para identificar um tipo de stalinismo cultural da esquerda.
Mas eu não penso que seja isso, de maneira nenhuma. A idéia de correção política versus incorreção política... Quer dizer, ela nunca foi usada por ninguém na esquerda, sem um certo grau de ironia. A verdadeira ameaça à liberdade de expressão vem, não da esquerda, mas da direita. Basta olhar para a direita religiosa. É exatamente o seu programa político. Eles querem controlar aquilo em que você acredita, o que você pensa.
Folha - E o que é PC?
Kushner - PC, Correção Política, significa basicamente que você leva muito, muito a sério as dificuldades que as pessoas têm na luta por liberdade. Para começar, se há necessidade de liberdade é porque você acredita que a opressão é uma realidade e não uma lamúria, uma queixa vazia feita por pessoas cheias de autopiedade.
Você acredita que a opressão é verdadeira e que as pessoas são brutalizadas por conta de raça, ou sexo, ou preferência, ou origem, e você acredita que o trabalho que faz, como um artista, como um homem de negócios ou seja o que for, tem um impacto na luta. De qualquer maneira, todo esse debate foi amplificado para além das suas proporções pela direita, como uma meio de calar quem a direita não quer ouvir. Mas eu realmente espero que as minhas peças sejam consideradas politicamente corretas. Por que eu não devo desejar que elas sejam? Claro.
Folha - Como você vê o crescimento da Direita Cristã nos Estados Unidos? Eles são o poder inevitável no próximo milênio?
Kushner - Eu peço a Deus que não. Estatisticamente, eles não chegam sequer perto de uma maioria dos eleitores americanos. Ainda há sinais encorajadores. Por exemplo, a maioria dos americanos não pensa que (o presidente da Câmara) Newt Gingrich deva ser presidente. Os americanos, historicamente, tendem a votar na direção do centro e a ficar longe dos extremos. Mesmo quando alguém é um extremista, como Ronald Reagan, ele tem que fingir não ser um. Embora ele fosse um semideus reacionário, quando você olha a maneira com que ele falava, foi sempre muito suave.
Há uma tradição profunda, neste país, de suspeitar de quem veste a sua religião muito ostensivamente, estando no governo. Eu espero que seja o caso. A América... Quando uma grande parte do mundo se tornou fascista nos anos 30, a América foi para a esquerda, para o máximo de esquerda a que jamais foi. E eu gostaria de acreditar que isso vai se manter, agora. Eu não sei se vai se manter. Mas certamente você tem que lutar contra essas pessoas, porque elas são extraordinariamente perigosas.
Folha - ``Angels in America" foi encomendada para ser uma peça curta, de fácil montagem. Como foi que ela se tornou um épico de sete horas?
Kushner - Em parte, apenas porque eu tinha muito para falar. Em parte, porque eu precisava... Bem, eu projetei uma peça com oito protagonistas, e isso é uma garantia de que ela vai ser mais longa do que uma peça comum. Para lidar com as histórias de oito pessoas diferentes, ou sete, em ``Angels", você vai precisar de tempo no palco. Eu queria escrever, eu queria tentar algo realmente ambicioso, em grande escala. Eu não me permiti articular esse desejo para mim mesmo. Apenas aconteceu. Mas eu penso que foi o que eu queria fazer.
Folha - Como surgiu a peça? Qual foi a sua idéia, quando você começou a escrever? Uma peça sobre política homossexual, sobre política cristã?
Kushner - Eu queria escrever uma peça sobre estar vivo, como eu disse, na América nos anos Reagan, sendo homossexual. Eu não busquei qualquer assunto específico. Eu queria dar à peça um campo inteiro para jogar, tanto quanto possível.
Eu sinto que se dissesse, ``esta vai ser uma peça sobre política homossexual" ou algo assim, eu estaria escrevendo algo como uma peça de tese. Eu estou muito mais interessado, e isso também vem de Brecht, na fascinação da perspectiva multifocal. A idéia de que o mundo no palco se apresenta a você com uma ampla riqueza de informação, que você vai ter que trabalhar para interpretar, e para a qual a platéia então tem que trazer... Eu suponho que você pode dizer que, se ``Angels in America" é experimental de alguma maneira, é nesse sentido.
Folha - Ela é aberta...
Kushner -Ela é genuinamente épica, em oposição a uma peça lírica ou simplesmente narrativa. Você tem muitas histórias diferentes acontecendo ao mesmo tempo. E todo mundo tem uma visão diferente sobre o que a peça trata. Eu recebo cartas de pessoas dizendo que ela é sobre esses personagens, sobre aquele, que é uma peça judaica, é uma peça gay, é uma peça sobre uma mulher viciada em Valium. Ela tem uma série de perspectivas diferentes.
Quando eu comecei a escrever, eu pensei apenas, ``bem, este é um tempo terrível, o milênio está se aproximando, há um sentimento apocalíptico no ar porque nós temos esse incrivelmente louco homem-mal como presidente, as pessoas estão morrendo à esquerda e à direita, com 20, 30 anos, de uma praga no final do século 20, e o próprio mundo, o mundo físico, parece estar se desmantelando, é um tempo muito ruim, e isso é o que você sente, eu sinto".
Folha - No trabalho de diretores como Robert Wilson e Peter Sellars, nos anos 80, o teatro experimental rejeitou os autores e as palavras.
Kushner - Sim.
Folha - Com ``Angels in America", agora, você acredita que os autores estão pedindo de volta o seu lugar no palco?
Kushner - Eu não faria ``Angels in America" o centro disso... O movimento em direção do teatro de imagens começou nos anos 60 e se tornou muito grande nos anos 70, com coisas como ``Einstein on the Beach" e com o trabalho de Wilson. E ainda há muito daquilo por aí. Eu acredito que, ao mesmo tempo em que aquilo aconteceu, houve uma resposta àquele tipo de teatro por uma geração de dramaturgos, como eu. Eu assisti ``Einstein on the Beach" e foi uma das coisas mais empolgantes que já vi no teatro. E eu assisti muito do trabalho de Wilson na época, e o que JoAnne Alkalaitis estava fazendo, sem palavras, ou melhor, com palavras que estava inventando.
Mas eu pensei, ``bem, isso é porque as palavras não têm mais utilidade ou porque as peças que estão sendo escritas não são particularmente úteis para espelhar a situação? Não há uma forma de escrever que também toque no que os eventos não-narrativos, não-verbais estão tocando?"
Eu sou apaixonado pela idéia do teatro como um lugar de encontro público onde o debate cívico é também entretenimento. E acredito que, se quiser tomar parte do debate cívico, eu vou dizer o quanto eu estou irritado em relação aos cortes do orçamento. E nesta sociedade de informação, as pessoas parecem contraditoriamente lidar cada vez menos com as imagens e cada vez mais com e-mail e com uma variedade de informações verbais. É muito significativo, e eu acho que nós temos que responder a isso com palavras.
Folha - Você falou da sua geração. Uma série de autores surgiu nos últimos anos, Brad Fraser, Anna Deavere Smith, Jon Robin Baitz. Você escolheria algum como mais próximo?
Kushner - Anna Deavere Smith é uma artista de teatro incrivelmente importante. O que ela está fazendo ninguém mais está fazendo. É tremendamente importante. Mas há um grande número de jovens. Um jovem americano de origem asiática, Han Ong, ele é ótimo.

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