São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 1995
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Estranhamento conduz `racismo cordial'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

D everia haver uma lei obrigando as pessoas a lerem o caderno sobre racismo publicado pela Folha no domingo passado. Peço desculpas pelo autoritarismo da frase, mas a questão é crucial.
O tema do preconceito de cor talvez seja o único, no Brasil, que põe em jogo ao mesmo tempo o comportamento pessoal e a estrutura da sociedade; o privado e o público se confundem e se determinam mutuamente, a ética e a política se relacionam do modo mais agudo, a identidade nacional se confunde com os direitos universais do homem, o Brasil se torna interessantíssimo.
E complicadíssimo. A pesquisa de opinião publicada na Folha mostra o seguinte: 88% dos entrevistados não-negros afirmam não ter preconceito de cor. Mas 87% desses mesmos entrevistados admitem já ter demonstrado preconceito contra os negros.
Como ficamos? "Racismo cordial, eis a fórmula feliz com que o jornal resumiu a situação. Afinal, existe ou não racismo no Brasil?
O geógrafo Milton Santos, em entrevista publicada no mesmo caderno, faz considerações extremamente críticas à pesquisa do Datafolha. A pesquisa só vai reforçar os preconceitos; para saber que o brasileiro é racista não precisava fazer essa pesquisa, e quantificar o racismo não é necessário.
Demorei um pouco para entender as críticas de Milton Santos. Terminei concluindo que ele acerta no principal: é difícil quantificar uma coisa não muito bem definida, ou seja, o preconceito.
O que é preconceito? O que é discriminação? Tudo é muito confuso no Brasil. Cito a entrevista, publicada no mesmo caderno, da professora Maria Thereza Férris, que respondeu a um processo por discriminação racial na escola em que era diretora.
Ela diz: "Tem preto que é gente. Imaginemos que tivesse dito de forma mais geral: "preto é gente. O interessante da frase é que ao mesmo tempo nega e reafirma o preconceito.
É picuinha dizer que, quando ela afirma "tem preto que é gente, está implicitamente admitindo que "tem preto que não é gente. Pouco importa. Tomemos a frase na sua versão genérica: "preto é gente; ou, melhor ainda, "preto também é gente.
Em tese, dizer isso não é preconceituoso; mas obviamente é preconceituoso. Afirma-se uma igualdade entre negros e brancos -são todos humanos-, mas a humanidade dos negros surge como descoberta, como revelação, como licença, como algo que se concede a eles.
Talvez esteja aí um dos horrores do "racismo cordial: o preconceito se exprime sempre que alguém diz não ter preconceito. Dizer que "no Brasil não existe racismo é verdadeiro até certo ponto (não há bancos na praça separados para brancos e negros, como havia no sul dos Estados Unidos) e enganador em última análise.
É preciso definir melhor os termos. Uma coisa é discriminação racial: ``Negro não entra neste restaurante". Outra coisa é preconceito: ``Ih, é negro... será que o cheque dele tem fundos?". Uma terceira coisa é o estranhamento: "Como? Um negro? Neste restaurante?.
Para todo mundo, é fácil dizer que não há discriminação. A pesquisa do Datafolha é eloquente: 82% dos brancos "não se importariam se uma filha ou filho se casasse com uma pessoa negra.
Óbvio que se pode dizer o seguinte: não se importariam, porque é apenas hipótese. É tão longínqua essa possibilidade que você pode admiti-la sem problemas. Na prática, na vida real, as coisas não seriam tão simples.
Mesmo assim... mesmo assim, o racista cordial está de algum modo comprometido pelo próprio discurso. Se a filha branca resolvesse casar com um negro, evidentemente isso seria uma má notícia, mas teria de ser aceita - já que é pior ser racista do que ter netos moreninhos. Seriam lindos, aliás.
Já é muito. Todo esforço civilizatório se resume a coibir instintos inconfessáveis. Civilização é hipocrisia; viva a hipocrisia.
Imagine-se uma pesquisa nos seguintes termos. Pergunta 1: você é um assassino? Resposta majoritária: não. Pergunta 2: você já teve vontade de matar alguém? Resposta majoritária: sim, raramente, algumas vezes, muitas vezes.
Conclusão, em manchete de jornal: "Brasileiros são assassinos disfarçados. Título do caderno: "Homicídio cordial.
Os brancos são racistas cordiais assim como são homicidas cordiais. Não é o pior dos mundos. Mas não é isso que está em questão.
O principal não é a discriminação (punida legalmente) nem o preconceito (existe em potencial, existe na prática) mas sim essa terceira coisa que chamei de estranhamento.
Milton Santos narra um caso exemplar. Estava num avião, e é negro. Foi falar alguma coisa com o comissário de bordo. O comissário respondeu em inglês. Milton Santos disse: "Não fale em inglês. O comissário respondeu: "Ainda não sei falar francês. Isto é, um negro no avião, para o comissário de bordo, devia ser estrangeiro, senegalês milionário, mas nunca brasileiro.
O comissário de bordo era racista? Não, não era. Mas é evidente que Milton Santos tinha razões para se enraivecer. O processo, aqui, é de estranhamento. É raro que um negro brasileiro ande de avião, ou mesmo que dirija um carro. Quando acontece, todos se espantam.
E esse espanto é ofensivo. Se eu fosse negro, ficaria doente de raiva. Mas o comissário de bordo não pode ser chamado de preconceituoso por causa disso.
Eu tinha 18 anos, usava óculos, carregava um caderno e entrei numa livraria para ver as novidades. O cretino no balcão achou que eu ia roubar livros e disse: "Deixa a pastinha comigo que eu guardo. Não era pastinha, era caderno, e eu não ia roubar livros, não ia escondê-los entre as folhas do caderno.
Fiquei doente de ódio. Fui vítima de "preconceito. Mas é certo que preconceito funciona por generalização. O dono da livraria já tinha visto dezenas de estudantes espertinhos roubando livros com o mesmo ar de sonso que era o meu.
Odeio até hoje esse dono de livraria. Fui injustiçado. Mas reconheço que ele tinha razão. Tinha toda razão em prevenir-se de um golpe que era costumeiro. Odeio-o apenas porque não foi hipócrita comigo. Ele poderia ter dito: "Não seria mais cômodo para o senhor se eu guardasse o seu caderno? Assim o senhor fica mais à vontade.... O "preconceito seria o mesmo, ele teria o mesmo medo de antes, o de estar às voltas com um ladrão. Mas teria sido melhor, mais civilizado, menos bronco, menos preconceituoso.
Resumindo: o "estranhamento diante dos negros resulta de uma estrutura social que é racista, não do racismo pessoal, que pode existir e existe. Um olhar de branco pode ser ofensivo, mesmo que o branco não queira ofender. O problema não é exclusivamente moral. Baseia-se no fato de que, com séculos de escravidão, associou-se negritude com pobreza, com coisa ruim, com padrões baixos de qualidade.
É uma conclusão ao mesmo tempo odiosa e verdadeira. Ninguém é racista; mas a sociedade o é. Quando a sociedade deixar de ser racista, o racismo individual, subjetivo, há de aparecer. Por enquanto, trata-se de aproveitar essa ausência de racismo subjetivo, esse antipreconceito teórico, carregando na mestiçagem. Ainda bem.
A solução do racismo está na mestiçagem; fora disso, fora dessa beleza extraordinária (mas será que sou racista na apologia?) criada no Brasil, só há uma salvação, a da hipocrisia. Hipocrisia que se fundamenta no fato de que a "ameaça -sua filha casar-se com um negro- é distante demais. Mas não se preocupe. Ela vai se casar. E os negros serão -é inevitável- engenheiros, advogados, executivos do futuro. O bom do Brasil é que, a longo prazo, não existe problema nenhum.

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