São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Domingão no aeroporto

MARCELO LEITE

Foi um domingão daqueles, o passado. Chuva, frio, espera interminável num incongruente restaurante francês de Quiririm (SP). Leitura dos jornalões e revistinhas iniciada depois do pôr-do-sol, contra os meus princípios. Surpresa.
Mais que a capa sem cores, o que espantava na Folha de oito dias atrás era a qualidade incomum. A fotografia preto-no-branco de Sebastião Salgado. A manchete ``Brasileiro é racista cordial", súmula de um instigante caderno especial. A reportagem detetivesca sobre o passado de Rubem Fonseca.
No esforço de ofuscar o lançamento dos fascículos envergonhados do concorrente ``O Estado de S.Paulo" (decepcionantes separatas da revista americana ``National Geographic"), a Folha caprichou. Mais uma vez mostrou que tem competência -embora nem sempre revele o fôlego- para fazer um jornal sofisticado.
Só que o ``Estado" também se esmerou. E ganhou o domingo, com a manchete ``Esquema de corrupção domina Cumbica".
A concorrência feroz da imprensa paulista será decidida no terreno da qualidade do jornalismo, não dos brindes. Por isso, do ponto de vista da Folha, é preocupante o contraste-símbolo entre os dois títulos.
De um lado, uma quase-notícia. Importante, polêmica, fruto de esforço e investimento. Mas artificial, porque uma pesquisa de opinião sobre racismo pode ser feita em qualquer dia.
De outro, uma notícia ``king size". Importante, polêmica, fruto de esforço e investimento. Mas nada artificial, porque desvendava os caminhos da corrupção no aeroporto apenas dois dias depois da demissão do chefe da alfândega.
A reportagem certa, na hora certa. A sorte dos esforçados, como dizem os alemães, mas com faro e olhos bem abertos.
Homossexualismo por metro
A edição daquele domingo se destacava não só pelo que tinha de menos.
``Ter ou não ter", aliás, era o chapéu (sobretítulo) de gosto duvidoso com que o caderno São Paulo (Cotidiano, na edição Nacional) subsumia várias reportagens sobre uma sensação entre as poucas variações possíveis de comportamento sexual: as FTM (``female-to-male", em inglês, ou mulheres que viram homens).
Para deixar claro que isso é mesmo possível, o jornal estampou na capa do caderno a foto de David Harrison e Shadow Morton. As duas barbadas.
Nas quatro páginas que se seguiam, um festival de detalhes: quantos centímetros cresce o clitóris com a injeção quinzenal de 200 mg de testosterona, injeção de silicone nos lábios vaginais para simular testículos, os nove passos de uma ``faloplastia".
Pouco vejo de errado, em princípio, em tornar públicas tais mutilações. Elas existem nas periferias sexuais, onde a massa folhada da normalidade hetero se esfarela. Entendê-las é um imperativo de autoconhecimento para a sociedade que as engendrou.
A pergunta que levei à Redação, na segunda-feira, e que quase uma dezena de leitores apresentaram ao ombudsman ao longo da semana, era outra: haveria tanto interesse no assunto homossexualismo?
O pretexto de 70 reportagens desde 8 de junho era a 17ª Conferência Mundial da Associação Internacional de Gays e Lésbicas. A reunião teve lugar entre os dias 18 e 25, no Rio.
Leia o que diz a secretária de Redação Eleonora de Lucena, responsável pela área de edição: ``Antes do evento, discutiu-se fazer uma cobertura de destaque, em função do pioneirismo da Folha no assunto. Pode ter havido certo exagero, mas a ação foi deliberada".
A meu ver, não resta dúvida quanto ao exagero. Não encontro outra palavra para qualificar o fato de o homossexualismo, com conferência e tudo, ter frequentado a capa do caderno durante 14 dias sem exceção, de 13 a 26 de junho.
Outros dados: 4 manchetes de capa de caderno, 18 de páginas internas, 36 fotos, cerca de 3.200 cm/coluna no total -o equivalente a 10 páginas limpas. Sem contar as caronas que outras editorias pegaram no tema de repercussão fácil, como Turismo.
Fui encontrar num detalhe o mais penetrante indício de que na raiz dessa superexposição há mais fantasmas do que coragem, perversidade antes de tolerância, exotismo no lugar de iluminismo. Um detalhe de gênero que abomino, por sua fatuidade -o trocadilho: ``Gayleria", usado como vinheta de uma seção de notas.
Corrupção e gayleria. ``Propina é paga com cheque em Cumbica" e ``Mulher vira homem e transa com homem".
Ter. Ou não ter.
Galisteu X Gancia
``Sutiã e Scania só compra quem tem peito", dizia o pára-choques de uma seção que não perdia na revista ``Quatro Rodas" de 25 anos atrás.
Era, a seu modo, uma forma sagaz de denunciar a promiscuidade de machismo e feminilidade que ronda a expressão ``ter peito", no sentido de ter coragem. O tipo da confusão que só parece possível na pátria da ambiguidade, Brasil.
O aforismo caminhoneiro saltou da memória quando li a resposta firme, quase viril, da viúva oficiosa de Ayrton Senna, Adriane Galisteu, à jornalista Barbara Gancia. O texto foi publicado na pág. 3-2 da última terça-feira, com o título ``Meu tributo a Ayrton é pessoal".
Galisteu teve a coragem de enfrentar uma profissional a quem nunca faltou coragem para dizer o que pensa. Depois de borboletear sobre alguns dos termos gancianos contra sua pessoa, como ``bubuca", Galisteu sapecou: ``Expressões desse naipe são comumente encontradas em portas de sanitários públicos, não em jornais de respeito como a Folha".
O jornal também teve peito para publicar a resposta fora do Painel do Leitor, onde são normalmente enquadradas as reações dos ofendidos. A réplica de Galisteu saiu em espaço semelhante ao da coluna de Gancia: mesma página, no alto.
Não se animem porém os que futuramente se sentirem prejudicados pela Folha. A deferência a Galisteu não indica uma mudança de padrões, no que respeita ao direito de resposta. Seu lugar natural ainda é a seção de cartas, como explica Eleonora de Lucena: ``Decidiu-se dar ali pelo interesse jornalístico. É um best seller".
Última palavra
Outra coisa que incomoda os leitores, além de respostas saírem na seção de cartas, são as famigeradas ``notas da Redação". A questão foi levantada ao ombudsman em fax de 10 de fevereiro do assessor de imprensa do fundo de previdência Previ, Cláudio Lacerda.
(Uma explicação: a carta foi reenviada esta semana por Lacerda para contestar nota da seção Erramos de terça-feira, na qual se afirmava que o ombudsman não recebera correspondência da Previ. O erramos estava certo, pois uma carta de quatro meses atrás não poderia ter antecipado a divergência do momento com o jornal, que não vem ao caso agora.)
Importante é responder à pergunta de fevereiro: o direito que o jornal se reserva de dar a última palavra pode ser considerado ético?
Sim, pode. Sempre que a resposta implicar acusação de incompetência, imperícia ou injustiça e o jornal puder argumentar objetivamente contra essa ameaça a sua reputação.
A nota da Redação não é necessariamente a última palavra, em especial num jornal que conta com ombudsman. O problema não está na nota da Redação, a priori, mas naqueles exemplares -infelizmente frequentes- que passam ao largo do mérito da questão e buscam desqualificar o queixoso.
A última palavra, a valer, cabe ao leitor. Nos casos mais gritantes, como o de resposta a um sociólogo tucano, ele vai chiar. E será ouvido.

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