São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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Sob a sombra da suspeita

DA REDAÇÃO

Em 19 de setembro de 1947, Brecht é intimado a comparecer diante da Comissão de Atividades Antiamericanas. Formada no fim da década de 30, a Comissão concentra-se em 1947 na investigação de supostas ligações de personalidades do cinema e teatro com o comunismo e a ``subversão". Em 30 de outubro, Brecht, que havia imigrado para os EUA em 1941, depõe na Comissão, à qual pertencia, entre outros, Robert E. Stripling e John MacDowell, que interrogam Brecht. Leia a seguir trechos do depoimento do dramaturgo.

Stripling - Por favor, sr. Brecht, o sr. poderia dizer seu nome completo e endereço atual para nosso registro?
Brecht - Meu nome é Bertolt Brecht. Moro na Rua 73 Oeste, número 34, Nova York. Nasci em Augsburg, Alemanha, em 10 de fevereiro de 1898.
Stripling - Sr. Brecht, o Comitê tem...
Presidente - Qual é mesmo a data?
Stripling - O sr. poderia repetir a data?
Presidente - 10 de fevereiro de 1898.
McDowell - 1898?
Brecht - 1898.
Stripling - Sr. Presidente, o Comitê dispõe de um intérprete aqui, caso o sr. quiser utilizá-lo.
Crum - O sr. gostaria de um intérprete?
Presidente - O sr. deseja um intérprete?
Brecht - Sim. (...) Sr. Presidente, posso ler uma declaração em inglês?
Presidente - Sim; mas o investigador-chefe já terminou suas perguntas à testemunha e ao intérprete?
Stripling - Não, senhor, ainda não. (...) Sr. Brecht, o sr. poderia dizer ao Comitê se o sr. é ou não cidadão americano?
Brecht - Não sou cidadão americano. Tenho apenas papéis provisórios.
Stripling - E quando os conseguiu?
Brecht - Em 1941, quando cheguei ao país.
Stripling - Quando o sr. chegou aos Estados Unidos?
Brecht - Posso verificar? Cheguei em 21 de julho a San Pedro, Califórnia.
Stripling - 21 de julho de 1941?
Brecht - Correto.
Stripling - O sr. nasceu em Augsburg, Baviera, Alemanha, em 10 de fevereiro de 1888, correto?
Brecht - Sim.
Stripling - Estou lendo em seus papéis de imigração...
Crum - Sr. Stripling, acho que a data é 1898.
Brecht - 1898.
Stripling - Como?
Brecht - Creio que a testemunha tentou dizer 1898.
Stripling - Quero saber se os papéis de imigração estão corretos a respeito. Afinal: 88 ou 98?
Brecht - 98.
Stripling - O sr. recebeu um visto de imigração do vice-cônsul americano em Helsinque, Finlândia, em 3 de maio de 1941?
Brecht - Correto.
Stripling - E o sr. entrou no país com esse visto?
Brecht - Sim.
Stripling - Onde o sr. viveu antes de ir a Helsinque, Finlândia?
Brecht - Posso ler minha declaração? Nesta declaração...
Presidente - Antes disso, sr. Brecht, estamos tentando identificá-lo; não deve durar muito mais.
Brecht - Tive que deixar a Alemanha em fevereiro de 1933, quando Hitler tomou o poder. Fui então para a Dinamarca, mas, em 1939, quando a guerra parecia iminente, tive que partir para Estocolmo, Suécia. Fiquei lá por um ano, e então Hitler invadiu a Dinamarca e a Noruega. Tive que abandonar a Suécia e fui para a Finlândia, à espera de um visto para os Estados Unidos.
Stripling - Sr. Brecht, qual é o seu trabalho?
Brecht - Sou dramaturgo e poeta.
Stripling - Qual o seu emprego atual?
Brecht - Não tenho emprego.
Stripling - O sr. alguma vez esteve empregado na indústria cinematográfica?
Brecht - Sim. Vendi uma história para uma companhia de Hollywood -"Os Carrascos Também Morrem-, mas não escrevi o roteiro. Não sou roteirista profissional. Escrevi uma outra história para uma companhia de Hollywood, mas ela não foi produzida.(...)
Stripling - O senhor é amigo de Hanns Eisler? O senhor conhece Johannes Eisler?
Brecht - Sim.
Stripling - Há quanto tempo o senhor conhece Johannes Eisler?
Brecht - Creio que desde meados dos anos 20, há mais ou menos uns 20 anos.
Stripling - E o senhor colaborou com ele em várias obras?
Brecht - Sim.
Stripling - Sr. Brecht, o sr. é, ou alguma vez foi, membro do partido comunista?
Brecht - Posso ler minha declaração? Responderei à pergunta, mas posso ler minha declaração?
Stripling - O sr. poderia submeter sua declaração ao presidente?
Brecht - Sim.
Presidente - Está bem, vejamos a declaração. (O Sr. Brecht entrega sua declaração ao presidente) Sr. Brecht, o Comitê examinou cuidadosamente a declaração. É uma crônica interessante da vida alemã, mas não é pertinente à investigação. Sendo assim, não há porque lê-la aqui. (...)
Stripling - Vou repetir a questão original. O sr. é, ou alguma vez foi, membro do partido comunista de qualquer país?
Brecht - Sr. Presidente, ouvi meus colegas dizerem que esta questão não é permissível, mas como sou hóspede deste país e não quero entrar em discussões legais, responderei a questão da melhor forma possível. Não fui nem sou membro de qualquer partido comunista.
Presidente - Então sua resposta é que jamais foi membro do partido comunista.
Brecht - Correto.
Stripling - O sr. não foi membro do partido comunista na Alemanha?
Brecht - Não, não fui.
Stripling - Sr. Brecht, é verdade que o sr. escreveu vários poemas, peças e outros escritos bastante revolucionários?
Brecht - Escrevi vários poemas e canções e peças na luta contra Hitler e, é claro, eles podem ser considerados como revolucionários, uma vez que eu era favorável à derrubada daquele governo.(...)
Stripling - Muitos de seus escritos basearam-se na filosofia de Lênin e Marx?
Brecht - Não, não creio que isso seja correto, mas é claro que a estudei, tinha que estudá-la na condição de dramaturgo que escrevia peças históricas, tinha que estudar as idéias de Marx sobre a história. Não creio que seja possível hoje em dia escrever peças inteligentes sem um tal estudo. Ademais, a história que se escreve hoje é influenciada vitalmente pelos estudos de Marx sobre a história.
Stripling - Sr. Brecht, o senhor frequentou reuniões do partido comunista desde sua chegada aos Estados Unidos?
Brecht - Não, acho que não.
Stripling - O senhor acha que não?
Brecht - Não.
Stripling - Então o senhor não tem certeza?
Brecht - Não, eu tenho certeza sim.
Stripling - O senhor tem certeza de que jamais esteve numa reunião do partido comunista?
Brecht - Sim, creio que sim. Estou aqui há seis anos... estou aqui... Acho que não, acho que não fui a quaisquer reuniões políticas.
Stripling - Deixe de lado as reuniões políticas -mas o sr. esteve em alguma reunião comunista nos Estados Unidos?
Brecht - Não, creio que não.
Stripling - Tem certeza?
Brecht - Creio que tenho certeza?
Stripling - O senhor acha que tem certeza?
Brecht - Sim, não frequentei tais reuniões, em minha opinião.
(...)
Stripling - Sr. Brecht, o senhor poderia dizer ao Comitê se, ao entrar neste país, o senhor prestou uma declaração ao serviço de imigração a respeito de suas filiações políticas no passado?
Brecht - Não me lembro de ter feito uma declaração dessa espécie, mas creio que fiz a declaração de praxe, de que não queria nem tinha a intenção de derrubar o governo americano. Talvez tenham me perguntado se pertencia ao partido comunista, não me lembro de me haverem perguntado, mas minha resposta teria sido a mesma que dei hoje -que não pertencia ao partido.
Stripling - Perguntaram-lhe se era ou havia sido membro do partido comunista?
Brecht - Não me lembro.
Stripling - Perguntaram-lhe se já havia estado na União Soviética?
Brecht - Acho que sim, e respondi-lhes que sim.
Stripling - Interrogaram-no a respeito de seus escritos?
Brecht - Não, não que eu me lembre; não, não me interrogaram. Não recordo qualquer discussão sobre literatura.(...)
Stripling - Sr. Brecht, o sr. alguma vez submeteu um pedido de admissão ao partido comunista?
Brecht - Não, não, não, nunca.
Stripling - Sr. Presidente, temos aqui...
Brecht - Sempre fui e sempre quis ser um escritor independente, e devo deixar isto claro -e creio que também teoricamente foi melhor para mim não entrar para nenhum partido. E todas essas coisas que os senhores leram aqui hoje não foram escritas para os comunistas alemães, e sim para trabalhadores de qualquer espécie. Havia trabalhadores social-democratas nessas apresentações, assim como trabalhadores católicos dos sindicatos católicos, além de trabalhadores que não pertenciam a nenhum partido ou que não queriam entrar para qualquer deles.
Presidente - Sr. Brecht, Gerhart Eisler alguma vez convidou-o a entrar para o partido comunista?
Brecht - Não, não.
Presidente - Hanns Eisler alguma vez convidou-o a entrar para o partido comunista?
Brecht - Não, não me convidou. Acho que ambos me consideravam um escritor que queria escrever e agir como achasse melhor, e não como uma figura política.
Presidente - O sr. se lembra de alguém que o tenha convidado a entrar para o partido comunista?
Brecht - Algumas pessoas devem ter sugerido, mas sempre achei que aquilo não me servia.
Presidente - Quem eram essas pessoas que lhe pediram para entrar para o partido comunista?
Brecht - Ah, leitores.
Presidente - Quem?
Brecht - Leitores de meus poemas ou pessoas nas platéias. O sr. quer dizer... não houve jamais um convite oficial para que eu publicasse...
Presidente - Mas alguém de fato o convidou a entrar para o partido comunista?
Kenny - Na Alemanha (Fala algo à parte para a testemunha).
Brecht - Na Alemanha, o senhor quer dizer na Alemanha?
Presidente - Não, referia-me aos Estados Unidos.
Brecht - Não, não, não.
Presidente (para o sr. Kenny) - Ele está indo bem. Está se saindo muito melhor do que as outras testemunhas que o sr. trouxe aqui. O sr. se lembra se alguém nos Estados Unidos alguma vez convidou-o a entrar para o partido comunista?
Brecht - Não, não me lembro.
Stripling - Gostaria de perguntar ao sr. Brecht se ele escreveu um poema, ou melhor, uma canção intitulada "Adiante, Não Nos Esquecemos.
Brecht - Não sei dizer. Talvez por causa do título em inglês.
Stripling - O sr. poderia traduzi-lo para o alemão? (Baumgardt traduz para o alemão)
Brecht - Ah, agora entendi, sim.
Stripling - O sr. conhece bem a letra?
Brecht - Sim.
Stripling -
"Adiante!, não nos esquecemos de nossa força nas batalhas que vencemos.
Não importam os perigos, adiante!, não esquecemos como somos fortes quando unidos.
Foram estas nossas mãos que construíram a estrada, os muros, as torres.
O mundo inteiro é obra nossa.
E o que podemos chamar de nosso?
E o refrão:
"Adiante! Marchemos sobre a torre, pela cidade, pela terra, pelo mundo;
Adiante! Avancemos. De quem é a cidade? De quem é o mundo?
Adiante!, não esquecemos nossa união na fome e na dor, não importam os perigos, adiante!, não esquecemos
Que temos um mundo a conquistar. Libertaremos o mundo da sombra; cada loja e cada rua, cada estrada e cada campo,
Todo o mundo será nosso.
O senhor escreveu isto, Sr. Brecht?
Brecht - Não. Escrevi um poema em alemão, mas era bem diferente deste. (Risos)
Stripling - Eram essas minhas questões, Sr. Presidente.
Presidente - Muito obrigado, Sr. Brecht. O senhor é um bom exemplo para as testemunhas do Sr. Kenny e do Sr. Crum.

Extraído de "Thirty Years of Treason - Excerpts from Hearings Before the House Committee on Un-American Activities, 1938-1968", de Eric Bentley

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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