São Paulo, domingo, 2 de julho de 1995
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O fervor indignado de Jabor

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É desnecessário apresentar os textos de Arnaldo Jabor a quem lê a Folha. Ele escreve semanalmente na "Ilustrada". "Brasil na Cabeça" reúne os artigos que publicou entre outubro de 1993 e outubro de 1994.
Diretor de cinema consagrado, Jabor parece descobrir no jornalismo uma nova e vigorosa forma de expressão. É visível nos artigos a euforia do autor com essa descoberta.
São com efeito textos de alto impacto. As palavras jorram, as imagens se acumulam; as visões são trepidantes e os cortes são abruptos, como no cinema nacional; e, como no cinema nacional, a dose de reiteração e de insistência é forte. Cortes e "travellings delirantes, como se o texto fosse um filme. Mas, ao mesmo tempo, a redundância e o fervor indignado, como se o texto fosse um panfleto.
Isso, nos tempos de Glauber Rocha. Os artigos de Jabor, atualmente, transportam esse paradoxo para outro plano. O tom panfletário, a expressão indignada frente às mazelas brasileiras se justificam imediatamente, já que se trata de texto jornalístico. Parecem ser produto de um autor que escreve rapidamente, para ser lido rapidamente. O ritmo da escrita contamina o da leitura.
Mas, ao mesmo tempo -e isso se torna mais claro quando os artigos se reúnem em livro-, ocorre que o frisson jornalístico, a eletricidade instantânea, a performance de cada texto como que se imobilizam em reiteração nervosa, em asserção profética, em veredito barroco.
A ambiguidade entre militância política e delírio estético, mal resolvida no cinema e na estética tropicalistas, encontra aqui uma versão mais avançada. Como se trata de jornalismo, a revolta diante de um fato específico se exprime com facilidade e encontra comunicação imediata com o leitor. Mas como não se trata apenas de jornalismo, e sim de texto expressivo, cumpre fazer com que a forma apareça truncada, visionária, febril.
Estamos diante de um autor extremamente sensível às pressões da época, aos absurdos do cotidiano. Uma opção seria denunciá-los, em nome da sensatez. Dizer: isto é absurdo, e eu sou sensato. Mas Jabor prefere o caminho oposto.
Retém, dos anos 60-70, o tom apocalíptico. Tudo parece prestes a desabar, tudo parece em vias de ser construído: a escrita privilegia o caótico, o incoerente, o frenético.
Paralelamente, Jabor é um desiludido das revoluções latino-americanas; apóia com decisão o projeto de Fernando Henrique. Não se esquiva de criticar as patrulhas de esquerda e aprecia no PSDB sobretudo o senso da nuança, da complexidade, da sutileza, face a um mundo não tão fácil de entender quanto o da Guerra Fria e do Imperialismo.
Assim como os manifestos do primeiro modernismo, os textos de Jabor são totalizantes, candentes, definitivos. Assim como um discurso peessedebista, defendem todavia uma política sensata de alianças, na qual há espaço para caber, em artigo posterior aos publicados no livro, um elogio a Roberto Marinho.
O modernismo de 1922 se caracterizava por aquilo que poderíamos chamar de "identificação" com o agressor. Ou seja, à medida que os ideais de beleza e de ordem se viram violentados pelo mundo da máquina, pelo roncar dos motores, pelo imediatismo da comunicação publicitária, pela síncope do jazz, pelo velocidade dos aeroplanos, coube aos modernistas, na trilha de Marinetti, mimetizar num elogio paródico aquilo que destruía as contemplações borocochôs da Arte, as serenidades distraídas da Literatura.
Era uma espécie de imitação crítica, de reprodução sardônica, de anticorpo, de vacina. Entre a paródia e a apologia do mundo moderno, ocorria uma oscilação técnica, que procurava resolver-se num meio termo conteudístico -o "Brasil, entidade por seu turno muito real e muito metafísica, misto de matéria-prima inocente e programa político, de selvageria empírica e idealização cultural.
Nos anos 70, o paradoxo se renovou. A industrialização foi real; as esperanças do desenvolvimentismo se concretizavam nos números do PIB -mas não significavam emancipação do país, nem emancipação popular.
A esquerda foi vítima de uma dupla traição. O empresariado revelou-se nada nacionalista e nada democrático; apostou na modernização autoritária, apostou na condição de ser sócio obscuro do imperialismo americano. Fernando Henrique Cardoso, naquela época, escandalizou a esquerda ao mostrar que era isso o que estava acontecendo. Traída pelo empresariado, a esquerda viu o "povão desinteressado de lutar pela democracia ou pelo socialismo. Ou pela emancipação nacional.
Creio que essa conjuntura marcou a estética de Jabor. Ei-lo agora, em plenos anos 90, marcado pela queda do muro de Berlim e pelo assédio dos miseráveis a cada sinal vermelho.
Daí surge, em seus artigos, o extremo horror diante de uma sociedade desigual e a reação desencantada frente às promessas tradicionais da esquerda.
No plano estilístico, convivem em seu texto três táticas distintas.
A primeira é a da colagem cinematográfica, onde se notam os cânones do modernismo oswaldiano e os tumultos de Glauber: visões do apocalipse, travellings caóticos.
A segunda é a tática da hipérbole, do exagero, onde se vê a influência de Nelson Rodrigues. Com uma diferença. Quando Nelson Rodrigues empregava a hipérbole em suas crônicas -Fulano "babava na gravata" Sicrano "uivava de ciúme"-, a figura de linguagem tinha a função de destituir qualquer realidade à cena descrita. Nelson Rodrigues era um falso realista. Jabor parece tomar as hipérboles de Nelson Rodrigues ao pé da letra. Usa das mesmas metáforas sem a frieza rodrigueana; em seus artigos, são intensificações retóricas, fervores expressivos.
E aí chegamos à terceira tática, que é a da sobrecarga vocabular, do barroquismo. O "corte", a "colagem", a visualidade cinematográfica e modernista se imiscuem de uma coisa que está entre o manifesto apocalíptico e a retórica. Os textos de Jabor definem não raro o "fim dos tempos", celebram ironicamente Collor e PC Farias como se fossem o "advento de uma nova era", apresentam-se como a erupção vulcânica de uma política moderada.
Não por acaso, então, Jabor faz uso de um artifício eficaz: o de atribuir ao inimigo (o deputado corrupto, o patrulheiro de esquerda) um discurso aparentemente verídico, no qual as distorções mais escandalosas de raciocínio se deixam reproduzir numa evidência de cinemascope.
Que concluir, então, desse esforço extremado de retratar o absurdo cotidiano e de, simultaneamente, expressá-lo com toda a força, com todo o seu poder de inspiração? Vejo um texto girando em torno de nossa loucura, mas que ao mesmo tempo não acha ruim ser "louco" ele também. Que defende alianças de "bom senso", mas que as nobilita num estado de delírio. Glauber defendia Golbery como "gênio" da raça. Jabor defende FHC, numa mistura semelhante de hipérbole e moderação.

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