São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Murilo por inteiro

SEBASTIÃO UCHOA LEITE

A partir de ``Poesia Liberdade", sobretudo a segunda parte, a linguagem muriliana torna-se menos abstratizante e intemporal. A poesia se delimita mais histórica e topologicamente. Fala de ``O choque do tempo contra o altar da eternidade" e ``O choque dos cerimoniais antigos/ Com a velocidade dos aviões de bombardeio". É poesia integrada à realidade histórica. No projeto posterior de ``Contemplação de Ouro Preto" (1949-50) recompõe-se um certo ``sermo nobilis", como se restaurasse a tradição descritiva da arcádia neoclássica. Mas o projeto é também introjetado de excessos hiperbarrocos e hipersimbolistas. É uma tentativa de ``colar" tema/forma através de uma ``restauração" prima-irmã da ``Invenção de Orfeu" de Jorge de Lima, um pouco posterior. Projeto fechado em si mesmo, com alguns altos momentos como o fragmento dedicado a ``São Francisco de Assis de Ouro Preto".
As soluções em ``Parábola e Siciliana" são diversas, pois há uma busca de concentração extrema, com realizações meticulosamente nítidas nesses dois livros, cuja economia topológica e busca de uma isomorfia tema/linguagem irá desaguar em projeto similar mas oposto ao da ``Contemplação". Pois ``Tempo Espanhol" quer abarcar uma civilização e dela construir um perfil claro. Noutros termos: através da própria linguagem poética e de imagens obsessivamente recorrentes (predominando as de ``concreticidade" e ``rigor"), construir o ideograma daquela civilização. Muda-se aí o paradigma poético, pois ao retrato ``descritivo" substitui-se um retrato ``linguístico". Como em ``Córdova": ``Conheço-te a estrutura tersa,/ Toda nervo e osso, contida/ Em labirintos de cal"(...). Em suma, uma linguagem ``tersa" como aquela estrutura, ``Onde Espanha é calculada/ Em número, peso, medida".
De certo modo, ``Convergência"(1970), última obra poética publicada em vida, no Brasil, não seria mais do que uma consequência lógico-formal de ``Tempo Espanhol", embora entre os dois livros medeiem 12 anos sem publicação, a não ser no exterior, e, aqui, de um livro de memórias. As consequências são extremas: os ``Grafitos" e ``Murilogramas" são, no primeiro caso, anotações sobre coisas, lugares e criadores artísticos, e, no segundo caso, mensagens pessoais exclusivas a artistas e poetas.
São profissões de fé de uma visão plural (convergências + divergências) e, às vezes, profissão de um certo fundamentalismo estético, uma crítica antiestetização do real, a louvação da antiestética (``Antes cadeira no duro" de ``Grafito numa Cadeira"). Ou de uma visão minimística, como em ``Grafito na Escultura `Santa Teresa' de Bernini", na linha gongórica ( ``Mármore vão petrificada espuma"), ``desgongorizada" pelo ``vão", que é o inútil e é o espaço interno da linha, e conceituada pelo verso ``Eu vi apalpei o signo" de ``Grafito para Giuseppe Capogrossi". Nos ``Murilogramas" há o predomínio da parataxe, onde se constrói o ``texto táctil". Tactilidade hipersintética que se vai radicalizando em ``Sintaxe", a segunda parte do livro, e termina com uma recuperação plena do humor, através de processos lúdicos extremados. E assim se retoma a antiga imagem do poeta-prestidigitador que vem de origens longínquas, do livro ``Poemas", já então totalmente ``construído", ao contrário de toda a lenda que envolveu o poeta.
Aqui se encerra esse roteiro de Murilo Mendes. Certamente, se ele se estendesse à sua prosa, sobretudo de ``Poliedro", livro anfíbio de poesia/prosa, e a obras em outras línguas, como ``Ipotesi", não chegaria a resultados diversos do que aqui se expôs.
Tem-se discutido o fato de o Murilo Mendes da última fase ter-se virado quase totalmente para uma denotatividade prosaica, quem sabe se por influências ``maléficas". Para esses críticos, Murilo Mendes teria ``empobrecido" a sua linguagem e deixado de ser, enfim, o poeta mais ``poético" que era até ``Mundo Enigma". Seria uma espécie de ``traidor de si mesmo". Os enigmas e paradoxos desapareceram e foram substituídos por uma linguagem explícita demais. Essa ``traição" inexiste. Os processos poéticos mudaram, mas a inflexão e tonalidade continuaram as mesmas.
Se ele se ``joãocabralizou" e se ``mondrianizou", como disse no final, ficou um Cabral desafinado e um Mondrian de linhas tortas. Se a obra anterior de Murilo Mendes sonhava um jogo de quebra-cabeças, com desmontagem/remontagem de peças, um mapa fragmentário a ser recomposto, ela não se tornou menos lúdica no final. Passou a jogar de outra maneira. Por exemplo, através de imitações, como no ``Murilograma para Mallarmé", em que o ideograma formal de Mallarmé é perfeito. Enfim, a busca de uma linguagem táctil, em que se constroem retratos ``linguísticos", como os diversos que há em ``Tempo Espanhol", ou como o de ``Murilograma para Graciliano Ramos": ``Brabo. Olhofaca. Difícil/(...) Desacontece, desquer", onde a construção assimétrica imita o ``estilo" de ser de um ``Personagem".
Pode-se preferir o Murilo ``antigo" (o de ``Mundo Enigma" para trás) por se achar que a riqueza poético-metáfórica era maior. As colagens fascinantes de imagens e elementos díspares se devem, naturalmente, às lições do universo das artes visuais. Essas lições não desapareceram. A verdade é que Murilo sempre ansiou pela ``ordem", não a ordem autoritária do fascismo, que sempre odiou, mas a ordem das coisas que se faz através de um paradoxal ``desconstrutivismo construtivo", como em ``O Operador" (``Os Quatro Elementos"): ``Uma mulher corre no jardim/ Despenteando as flores/ Alguém desmonta o tempo/ Édipo propõe um enigma às constelações/ O mar muda provisoriamente de lugar/ Se assobiarem um foxtrote/ A ordem se fará outra vez". Esta ``ordem" que não despreza o humor é a mesma que se encontrará no final da sua vida/obra. Não um antípoda de si mesmo, mas um complementar do seu paradoxo original.

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