São Paulo, segunda-feira, 3 de julho de 1995
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Prisões

FREI BETTO

A ditadura militar, além de condenar-me a dois anos de cárcere e obrigar-me a cumprir quatro, e suspender meus direitos políticos por dez anos, cassou também meu direito legal à prisão política. Encarcerado em 1969, dois anos depois fui retirado do Presídio Tiradentes, em São Paulo, e conduzido, primeiro, à Penitenciária do Estado; em seguida, ao Carandiru; por fim, à penitenciária de Presidente Venceslau, nas quais vivi entre 1972-73.
Essa ``descida aos infernos" permitiu-me mergulhar no mundo dos presos comuns. Obrigaram-me a cortar o cabelo, trajar uniforme, habitar o mesmo pavilhão no qual se misturavam todos os tipos de criminosos. E passei a ser tratado, não mais pelo nome, mas pelo número da matrícula carcerária -25044, que permanece intransferível.
Muito eu teria a dizer da ``noite escura" que me abriu a uma nova visão de Deus e do ser humano. Porém, é hora de falar a partir das inúmeras rebeliões que se sucedem nas cadeias de São Paulo e das fugas nos presídios do Rio. Aos governos federal e estaduais falta uma política carcerária que adote métodos pedagógicos avançados capazes de ressocializar o preso para o convívio social e o mercado de trabalho.
``Um sonho de liberdade", filme de Frank Darabont, mostra que ao longo deste século o sistema penitenciário não sofreu alterações. Direções corruptas, carcereiros traficando drogas e armas, torturas como método disciplinar e longa ociosidade entremeada de trabalhos inúteis (a ``laborterapia") concorrem para devolver à sociedade homens muito mais degenerados do que quando foram aprisionados.
Como esperar que não se rebelem presos que só conhecem a pancada como forma de diálogo, a propina como acesso a direitos, a humilhação como pedagogia de guardas e agentes penitenciários que desfrutam do poder de impor sua soberana vontade sobre semelhantes encarados como seres abjetos?
Sem falar da superlotação das celas, da promiscuidade, da má alimentação e de tantas aberrações nesse sistema que, como observou Michel Foucault, só não extermina suas vítimas -embora haja exceções, como o massacre dos 111 no Carandiru, sob o governo Fleury- porque a sociedade precisa mostrar ao assalariado que ``podia ser pior"...
Dois anos como preso comum convenceram-me de que a grande maioria é recuperável. Basta motivá-la para atividades que reeduquem sua subjetividade. Menos Pinochet e mais Piaget. Menos Pavlov e mais Paulo Freire. Em Presidente Venceslau, nosso grupo de seis presos políticos reduzidos a comuns organizou Círculos Bíblicos. A religião opera milagres em homens encarcerados.
Mas nem sempre os capelães são bem vistos pela direção, porque têm ouvidos para escutar gritos, e olhos para ver feridas. Montamos um grupo de teatro. Duas apresentações foram abertas ao público da cidade. Os ensaios funcionavam como terapia de grupo. Recordo de ``Cabeção". Não falava e nunca tirava a japona. Indaguei por quê. ``Você já viu o Frank Sinatra em mangas de camisa?", perguntou-me, acrescentando: ``Mafioso anda sempre de terno e gravata". Em poucas semanas de ensaios, ``Cabeção" contou o crime que cometera para fazermos um laboratório teatral e abandonou a japona.
Reorganizamos o ateliê de pintura, priorizando a criatividade. Hoje, um daqueles presos é citado pela mídia como revelação de artista. Insistimos em improvisar um curso supletivo de segundo grau. A direção, incapaz de reconhecer qualquer valor naqueles homens, cedeu um horário que obrigava os alunos a perderem o recreio e duvidou que houvesse interesse. Oitenta presos se inscreveram e persistiram. Nos pátios, o tom das conversas passou de estiletes e façanhas criminosas para história do Brasil e elementos químicos.
Com tantos anos atrás de grades, o que seria de um homem que pudesse aprender idiomas, computação, culinária, e trabalhar em oficinas melhor aparelhadas e realmente produtivas? Para isso, entretanto, são necessários agentes penitenciários com melhores salários e um mínimo de instrução em pedagogia e psicologia.
O secretário da Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, tem agido com prudência e firmeza nos casos de rebeliões, contendo os ímpetos daqueles que apregoam que ``bandido bom é bandido morto". Só a lamentar que ele deixe a pasta da Administração Penitenciária, através da qual todo um trabalho pioneiro na esfera penitenciária poderia ser feito. Infeliz do país que se gaba de construir mais cadeias que escolas. Mais infeliz quando não é capaz de fazer de suas cadeias escolas de reeducação.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 50, frade dominicano e escritor, é autor de ``Batismo de Sangue" e ``Cartas da Prisão".

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