São Paulo, terça-feira, 4 de julho de 1995
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Bósnia, exemplo do que não fazer

LUIZ A. P. SOUTO MAIOR

Para a opinião pública nacional, a notícia do sequestro de observadores das Nações Unidas -entre os quais dois oficiais brasileiros, posteriormente libertados- e de sua utilização pelos sérvios da Bósnia contra a eventualidade de novos ataques aéreos da Otan deu ao conflito na ex-Iugoslávia uma proximidade e um sentido humano que até então não tinha.
Na mente do brasileiro médio passou a formar-se a imagem de uma luta selvagem, frente à qual a comunidade das nações, representada teoricamente pela ONU, era incapaz sequer de proteger os seus representantes, e a mais poderosa aliança militar do planeta era reduzida à impotência pela chantagem de um bando militarmente pouco expressivo. Diante de tal quadro, surge uma inevitável perplexidade.
Uma reflexão sobre a atuação da ONU na Bósnia, embora melancólica, pode lançar alguma luz sobre os problemas que inibem a eficácia do Conselho de Segurança e a necessidade de reformá-lo, na qual se insere o pleito brasileiro por uma posição de membro permanente.
De acordo com a Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança pode promover a solução pacífica de litígios suscetíveis de pôr em risco a paz e a segurança internacionais (capítulo 6), ou usar forças militares para as ações que julgue necessárias à manutenção ou o restabelecimento da paz internacional (capítulo 7).
Em ambos os casos, a presença de forças das Nações Unidas numa área de conflito destina-se -ou deveria destinar-se- a alcançar objetivos claramente definidos, sejam eles a observância de um entendimento já aceito pelas partes em conflito, ou a imposição a elas de uma linha de conduta determinada pelo Conselho. Em ambos os casos, é indispensável que tais forças disponham dos meios materiais e de normas de engajamento adequadas ao cumprimento da sua missão.
No caso da Bósnia, as Nações Unidas assumiram três tarefas: levar ajuda humanitária a populações civis isoladas pela guerra; defender as áreas de segurança designadas pela própria ONU; buscar um acordo de paz entre as partes em confronto. Claramente inexistiam as condições para o organismo internacional desincumbir-se de qualquer delas.
Para as duas primeiras era indispensável a aquiescência das partes em conflito, particularmente dos sérvios. No mínimo, era necessário que elas estivessem dispostas a não desacatar a vontade da comunidade internacional, supostamente expressa pelas decisões do Conselho de Segurança.
Na ausência de tal disposição por parte dos combatentes, só o emprego de forças de terra poderia assegurar, de forma regular, o abastecimento das populações sitiadas e a defesa das áreas de segurança. Na prática, os sérvios mostraram soberano desprezo pela ``vontade da comunidade internacional", e as grandes potências só coincidiram plenamente na relutância em engajar suas tropas num conflito previsivelmente oneroso em vidas e recursos.
As dificuldades para o cumprimento da terceira tarefa parecem igualmente claras. Em última análise, toda guerra gira em torno de quem, terminado o conflito, deve mandar em que território. Assim, a paz só é possível pelo esgotamento dos contendores, quando ambos se convencem que têm mais a perder com a continuação das hostilidades do que com as concessões necessárias à paz, ou pela vitória de um deles.
Um terceiro, no caso a ONU, só pode apressar a superveniência da paz de uma de três maneiras: aproveitando politicamente o desgaste militar de contendores próximos do esgotamento; tomando o partido de um deles e acelerando a sua vitória; ou intervindo com forças superiores para impor uma solução, que pode ser imparcial ou mais ou menos favorável a uma das partes.
No tocante à Bósnia, a selvageria do conflito tornava inviável esperar passivamente o esgotamento dos combatentes, mas tampouco existia entre as grandes potências unidade de vistas quanto ao lado a ser eventualmente apoiado, ou condições políticas internas para um engajamento militar maciço.
As decisões finalmente tomadas refletem a intratabilidade da situação acima resumida. Enviaram-se tropas com equipamento e normas de engajamento inadequados à tarefa que se lhes atribuía, e propuseram-se planos de paz inviáveis -talvez porque, naquele estágio do conflito, nenhum plano fosse ``viável", no sentido de aceitável, sem coerção externa, pelos combatentes.
Em suma, fez-se o que era possível, dados os condicionamentos políticos externos e internos das potências que, em última análise, deveriam intervir no teatro das operações em nome da comunidade internacional -e isso provou ser totalmente inadequado à solução do conflito. A credibilidade da ONU tende a sair do episódio consideravelmente machucada.
O ocorrido ilustra o dilema que vivem a ONU e os que nela crêem. Por um lado, não é realista esperar que as potências com os meios necessários para intervir decisivamente em conflitos locais aceitem sofrer consideráveis perdas materiais e, sobretudo, humanas, quando seus interesses não estão diretamente ameaçados. Por outro, a idéia de ``intervenção internacional" perde sua legitimidade na medida em que se vê efetivamente condicionada aos interesses das grandes potências.
Reformar o Conselho de Segurança, aumentando-lhe a representatividade, não resolve tal dilema, que reflete a assimetria da distribuição internacional de poder. Poderá, entretanto, dar maior equilíbrio ao exame de cada caso e, talvez, evitar que a ONU, no futuro, como hoje ocorre na Bósnia, dê ao mundo o exemplo do que não fazer.

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