São Paulo, sexta-feira, 7 de julho de 1995
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Arte/Cidade faz viagem pela era mecânica

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma viagem de trem pelo passado industrial de São Paulo é o que propõe a terceira e última edição do Arte/Cidade, marcada para novembro deste ano.
Com presença do ministro da Cultura, Francisco Weffort, o evento será lançado hoje na antiga sede das Indústrias Matarazzo, uma das extremidades do percurso ferroviário do Arte/Cidade 3.
A Folha visitou anteontem os quatro pontos do trajeto em que obras de 30 artistas plásticos se distribuirão e eventos de artes cênicas também ocorrerão.
O coordenador do Arte/Cidade, o ensaísta Nelson Brissac Peixoto, quer fechar em alto estilo o projeto iniciado em fevereiro do ano passado, na antiga sede do Matadouro Municipal, atual endereço da Cinemateca Brasileira.
O tema da terceira edição é ``A Cidade e suas Histórias". Participará dela um time de artistas que Brissac considera o melhor entre os três (nenhum se repetiu).
Entre eles, o próprio Brissac destaca Tunga, Carlos Vergara, Ângelo Venosa, Rosângela Rennó, Marcos Benjamin, Dudi Maia Rosa, Paulo Pasta e Evandro Carlos Jardim. Há também videastas como Joel Pizzini e Sandra Kogut e grupos como o Uakti, de música, e o Teatro da Vertigem.
Os nomes foram escolhidos por afinidade da obra com a proposta do evento, que Brissac define com dois termos: a máquina e a mão.
``O maquinismo e a manufatura da era industrial, marcas do século 19 paulista, são o nosso assunto. Tudo que envolva uma mecânica, um movimento regular."
Brissac aponta como exemplos os trabalhos que tratam da ``transmutação de materiais ao longo do tempo" e os que partem da impressão, como as gravuras, que usam meios mecânicos e se apropriam das características dele.
Tunga, Venosa e Benjamin são alguns dos que lidam com a articulação de materiais e sua modificação ao passar do tempo. Rennó, Jardim e Vergara usam a impressão mecânica ou a idéia dela. Pasta e Rosa são preocupados com a superfície da pintura, na qual a superposição de camadas transmite uma noção de tempo decorrido.
Para Brissac, São Paulo cresceu e se tornou metrópole por ter sido um entroncamento ferroviário. ``São Paulo era menor do que Campinas e outras cidades do interior, que a usavam para escoar sua produção." Hoje esse passado não tem presença no cotidiano.
Brissac mostra a foto aérea do percurso do Arte/Cidade 3 e o qualifica de ``chaga do passado". Os quatro pontos trazem ruínas ou são lugares que já não têm a utilidade e o glamour que outrora tiveram.

Percurso
O percurso pode ser feito nos dois sentidos (veja quadro abaixo). Um ponto de partida pode ser a Estação Júlio Prestes (Campos Elíseos, região central), antigo ponto de partida da ferrovia Sorocabana, que cortava o Estado paulista; hoje, é usado para ligar o centro da cidade a subúrbios.
Outro início possível do percurso é a antiga sede da Indústria Matarazzo, na Água Branca, hoje reduzida a dois galpões arruinados.
Partindo da Júlio Prestes, a primeira parada é no Moinho Central, mais um mastodonte do passado. Trata-se de um prédio, ou o esqueleto dele, e seis silos de ferro, antigos depósitos de grãos.
A segunda parada é uma estação na rua do Bosque, na Barra Funda, ainda em uso, mas para o estacionamento de vagões. O pátio funcionará como um palco e uma galeria ao ar livre.
A idéia de que é preciso um deslocamento mecânico por parte do público é central para o evento. ``A narrativa e a era mecânica nasceram juntas", diz Brissac. ``E isso modificou a nossa noção de história, de passado."
Brissac lembra que a gravura, a fotografia e o cinema são as artes mecânicas -nelas a mão manipula a máquina para criar. Diz que o evento, assim, será um ``travelling pelo passado da cidade", referindo-se ao recurso narrativo do cinema em que a câmera acompanha o objeto em movimento.
O Arte/Cidade 3 disporá de quatro vagões e duas locomotivas, exclusivamente cedidos ao evento. Também foram construídos novos ramais e recuperados velhos dormentes para o percurso.

Futurismo
Os vagões serão pintados. Brissac decidiu que a pintura seria baseada na que o grupo da vanguarda russa dos anos 10 e 20, Blaue Reiter, ao qual pertenceu Kasimir Malevitch (1878-1935), criou justamente para decorar trens.
Outra inspiração da arte russa foi tirada do ``kinotrem". ``Kino" é o radical que compõe a palavra cinema e significa ``movimento". Nos kinotrens uma equipe, dirigida por Alexander Medvedik, filmava passageiros e as pessoas nas estações e exibiam os filmes na mesma viagem. Na viagem do Arte/Cidade 3 também serão exibidas imagens feitas diariamente.
A adoção do referencial da vanguarda russa é óbvia, pois ela propunha diálogo da arte com a era industrial, explorando o movimento. Brissac acha que a pintura dos trens, feita nesse estilo (veja imagens no alto desta página), ganhará com o deslocamento dos vagões uma plasticidade ainda maior.
E o trem como veículo de arte no exterior e interior, para Brissac, servirá para o público refletir sobre as relações entre máquina, homem, arte e memória, que serão temas dos trabalhos expostos.
O que se planeja é que haja cerca de seis saídas por dia. Os horários estarão na própria grade da rede ferroviária, e os ingressos serão comprados nas bilheterias.
Em cada ponto do percurso o trem deve passar de hora em hora. Assim, quem desce num dos dois pontos intermediários tem de ficar uma hora no lugar. Brissac afirma que o tempo será bem ocupado: ``Os espaços são muito interessantes, e as leituras, diversas".
Ele diz que, ainda que os espaços sejam na maioria ruínas abandonadas, a viagem do Arte/Cidade não será a de um ``trem-fantasma". A idéia é que os artistas combatam a noção de decadência (leia texto abaixo). ``O passado será visto como algo ativo."

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