São Paulo, sábado, 8 de julho de 1995
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Enfim, a política de rendas

PAUL SINGER

Com a MP da desindexação, o governo deu o segundo passo no rumo da desmontagem e eventual remontagem do movimento sindical. O primeiro foi a lição que o governo acredita ter dado não só nos petroleiros, mas à CUT, ao reprimir com ferocidade inédita a greve da categoria.
Intimidado o sindicalismo, o governo aproveita o primeiro aniversário do Plano Real para introduzir pretensa ``livre negociação" no mercado de trabalho, com inovações inesperadas e insuspeitadas". É preciso ler para crer. A ``livre negociação", agora reinventada, começa por vedar ``a fixação ou estipulação de cláusula de reajuste ou correção salarial automática vinculada a índice de preços." Ou seja, mesmo que as duas partes, empregados e empregadores queiram, não podem contratar o reajustamento futuro em qualquer prazo de salários por índice de custo de vida. Mas a vedação vai além: também não pode conceder ``a título de produtividade, aumento de salário não amparado em indicadores objetivos, aferidos por empresa." Este item se dirige diretamente contra a Justiça do Trabalho, que costuma conceder aumentos reais de salário, justificados por aumentos de produtividade iguais para categorias inteiras. Agora não pode mais.
E de agora em diante, antes que se abra dissídio coletivo, as partes terão que contratar à sua custa um mediador, que terá um mês para conciliá-las. Se não conseguir, o dissídio poderá começar inevitavelmente atrasado por 35 dias (o mediador terá 5 dias para lavrar seu laudo). A idéia de introduzir mediador pode ser boa ou não, mas torná-la obrigatória contraria mais uma vez a liberdade de negociar.
Em suma, antes da MP, as partes podiam negociar livremente reajustamentos futuros de salários, aumentos reais de salários a pretexto de produtividade ou não, e podiam a qualquer momento instaurar dissídio, ou seja, recorrer à Justiça do Trabalho; depois da MP que instaura a livre negociação tudo isso fica proibido. É admirável a plasticidade da língua -é possível tornar a negociação salarial livre impondo-lhe sérias restrições.
As restrições à negociação salarial, impostas desde já ``provisoriamente" pelo governo, voltam-se contra os sindicatos, que ficam proibidos de reivindicar justamente aquilo que classicamente sempre reivindicaram no Brasil: proteção aos assalariados contra inflação futura (que nem a equipe econômica se atreve a negar que virá) e aumento real de salário.
Os sindicatos mais fortes costumam promover greves para conquistar estas vantagens para seus membros. Agora, estas greves poderão ser declaradas abusivas. Os sindicatos mais fracos ou em situação desfavorável no mercado de trabalho, em vez de fazer greve, recorrem à Justiça de Trabalho, onde em geral obtêm pelo menos a reposição da inflação passada e algum aumento real.
Agora terão de passar pelo purgatório do mediador e os juízes do trabalho serão pressionados a não conceder aumento real, a não ser por empresa, ``amparado em indicador objetivo". Não é difícil concluir que a posição dos sindicatos à mesa de negociação fica consideravelmente enfraquecida.
Mas as medidas da MP da desindexação são apenas o começo. O ministro do Trabalho já anunciou que o próximo passo deverá ``acabar com os sindicatos por base e estabelecer sindicatos por empresa" (Folha, 1º/7/95, pág. 1-6). Provavelmente a ser instaurado, após ``ampla discussão com os interessados", por medida provisória que crie no país a ``livre sindicalização".
A ofensiva antioperária do governo surpreende por ousar muito mais que a ditadura militar, pelo menos em sua fase de abertura, de 1978 em diante. Mas a sua lógica corresponde à ideologia neoliberal, segundo a qual os sindicatos seriam monopólios que tornariam os mercados de trabalho imperfeitos, impondo salários acima do ponto de equilíbrio e, com isso, impedindo o emprego de quem queira trabalhar por menos.
Os sindicatos seriam do lado operário o mesmo que os oligopólios do lado capitalista, ambos formando a ``coligação inflacionária" que seria preciso esmagar para garantir a estabilidade dos preços. Ao que parece, a forma escolhida de aperfeiçoar o mercado de trabalho é acabar com os sindicatos como são e substituí-los por sindicatos por empresa, evidentemente muito menores e muito mais fracos.
Desde seu início, um dos pontos fracos do Plano Real era não ter política de rendas. Agora, a MP da desindexação revela a política de rendas do plano: consiste em permitir a defesa contratual contra os efeitos da inflação das rendas da propriedade (juros, aluguéis etc.) mas não dos salários.
Daqui para diante, todos os preços da economia estão liberados do controle, menos um: o salário. Mas não se conclua disso apressadamente que o governo seja contra o trabalhador. É que, segundo a nova filosofia liberal, a melhor forma de ajudar o trabalhador é favorecendo o capitalista: ``a estabilidade monetária, a demanda por mão de obra, o aumento de produtividade e o fortalecimento do ambiente de negociações são condições necessárias para assegurar ganhos reais de salários" (exposição de motivos da MP).
Como ninguém ignora, para que aumente a demanda por mão-de-obra e a produtividade é preciso investimento, e este depende essencialmente dos lucros. Proteger os lucros em detrimento dos salários, embora pareça o contrário, ``assegura ganhos reais de salários".
É pena que em lugar algum, em época alguma, os trabalhadores ganharam qualquer vantagem sem lutar por seus interesses. Por isso, terão que se mobilizar e enfrentar esta ameaça aos seus direitos e à própria existência de seus sindicatos.

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