São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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A diarréia normativa

ROBERTO CAMPOS

Somente no Rio e São Paulo há 1 milhão de usuários na fila, à espera de um celular
``Corruptissima in republica plurimae leges - As leis abundam nos Estados mais corruptos"
(Tácito)

A votação dos monopólios estatais representou uma vitória ideológica, pela demolição de mitos. Mas não significa ainda modernização operacional, em virtude de uma doença encontradiça em nossos parlamentares: a diarréia normativa. As novas normas são de eficácia contida, isto é, dependem de leis regulamentares. Possuído talvez de um complexo de inferioridade, ou de temor subliminar de inoperância, o Congresso proibiu a edição de medidas provisórias pelo Executivo, instrumento que seria útil para acelerar privatizações. Trata-se de uma impropriedade constitucional. Enquanto o instituto das medidas provisórias não for elidido do texto constitucional, a vedação de sua edição implica invasão do Poder Executivo pelo Legislativo. Este tem outros meios de cercear abusos legisferantes. Pode negar a relevância e urgência das medidas provisórias, e pode modificá-las ou rejeitá-las. O que não cabe é proibí-las.
A flexibilização (urgentíssima) do monopólio do petróleo fica inibida pela abrangente auto-obrigação que se impôs o Congresso de votar antes uma lei regulamentar. A rigor, a exigência de lei deveria ser limitada a dois aspectos: revogar o monopólio da petrossauro, previsto na lei nº 2004, essa cretinice antidesenvolvimentista, e criar um órgão regulador independente para supervisão da política de petróleo, no qual deveriam estar representados os consumidores e as regiões produtoras. Todo o resto -concessões ou permissões para refinarias, gasodutos e oleodutos, assim como contratos de risco- poderia ser iniciado dentro das leis atuais de licitações e concessões. A exigência de uma nova lei abrangente será um fator de atraso. Permitirá a mobilização de interesses corporativistas, e dará às esquerdas espaço para exibirem sua ``burrice", recém-descoberta por Fernando Henrique Cardoso, mas que há mais de 30 anos detectei como formidável presença em nossa paisagem. A propósito de seu país, a Índia, o professor J.K. Mehta (que nada tem a ver com Juscelino), da Universidade de Allahabad, dizia que o subdesenvolvimento só é explicável por uma combinação de burrice e mau caratismo. A carapuça nos serve direitinho...
Para obter alguns votos a mais, o líder do governo na Câmara fez aos petrólatras promessas imprudentes. A petrossauro não será privatizada, o que significa que o governo renuncia a um excelente método para reduzir sua dívida interna e externa, baixando com isso os juros. A petrossauro não sofrerá concorrência nas áreas em que já opera (escapando assim a um teste de eficiência) ou por ela já pesquisadas (o que lhe dá uma reserva de caça, provavelmente superior à sua efetiva capacidade de investimento). Além disso, terá preferência nas concessões, em igualdade de condições, o que contraria o princípio constitucional de primazia da iniciativa privada na atividade econômica, pois a área preferencial do governo é institucional e social. Não fosse essa nossa doença de diarréia normativa, a flexibilização poderia ser ágil. Para os contratos de risco já existem padrões internacionais e a própria petrossauro sob eles opera em nove países. Qual será o escopo das operações ordinárias da petrossauro é algo a ser decidido, caso a caso, à luz de sua capacidade efetiva de investimento. No mínimo, deveria ser obrigada a apresentar um cronograma do investimento que, se descumprido, levaria a um descarte das áreas concedidas. Estas retornariam ao poder concedente, para realocação a terceiros, a fim de atingirmos rapidamente nossa auto-suficiência no setor.
O caso das telecomunicações é talvez mais lancinante, e a flexibilização do monopólio mais imperativa, por três motivos: possibilidade de absorção rápida de capitais estrangeiros, atenuando a crise cambial; oferta de empregos, sobretudo para a juventude treinada que hoje chega desencorajada ao mercado de trabalho; aumento da eficiência econômica e redução do custo Brasil. O ministro das Comunicações, Sérgio Motta, familiarizado com a arrogante ineficiência do complexo telessauro (Telebrás e Embratel), tem percepção dessas urgências. Sabe que só no Rio e São Paulo há 1 milhão de usuários na fila, à espera de um celular. Estes se sentirão insultados se, no dia seguinte à votação pelo Senado da quebra do monopólio, não estiverem na rua os editais de licitação para investidores privados, mais capitalizados e ágeis do que os dinossauros estatais.
Confortavelmente instalados com seus telefones convencionais e celulares no deserto intelectual de Brasília, muitos congressistas não sentem a angústia do profissional liberal ou do pequeno empresário, que precisam recrutar clientes, ofertar bens e serviços, ou atender a emergências familiares. Ou do grande empresário, que precisa de um bom serviço de transmissão de dados para manter sua competitividade e reduzir o custo Brasil. Para todos esses, quatro a seis meses adicionais de espera, até que congressistas se esgrimam em discussões bizantinas, significam PIB perdido, ineficiência compulsória e modernização diferida. Sob o título ``Um dia na vida de Ivan Denisovich", o famoso livro de Solzhenitsyn descreve o imenso repertório de tragédias no cotidiano comunista. ``Seis meses à espera da telessauro" será a novela resultante do esforço de alguns congressistas para obstaculizar a pronta flexibilização do monopólio de telecomunicações.
São esquisitas as coalizações obscurantistas. No caso das telecomunicações, os mais resistentes em retardar qualquer flexibilização (mesmo de celulares e serviços adicionados) vêm de dois extremos do espectro -o PDT e o PPR. Já tendo estragado globalmente o Rio de Janeiro, não é ilógico para o PDT atrasá-lo setorialmente, pela obsolescência telefônica. O PPR, entretanto, é um partido liberal, que defende a soberania do consumidor. E este, se consultado, acharia que é mais urgente conseguir telefones do que regulamentar a telefonia. É essa, aliás, a atitude dos comunistas chineses, no caso mais liberais e capitalistas que nós. Implantaram no ano passado, com apoio das seis maiores multinacionais de telecomunicações, 10,7 milhões de terminais e planejam instalar anualmente 14 milhões entre 1995 e 2002, ou seja, mais que uma telessauro por ano! A regulamentação virá depois.
A passagem imediata de uma nova lei de telecomunicações que substitua o Código de Telecomunicações de 1962 é desnecessária, desrespeitosa e perigosa. Desnecessária, porque a flexibilização pode ser iniciada, com observância dos princípios das leis de licitações e de concessões, do próprio Código de Telecomunicações (ainda aproveitável), da Lei de Telefonia e TV a Cabo. Leis não faltam. Faltam dinheiro e capacidade gerencial. Sob o pretexto de não se dar ``carta branca" ao governo causa-se um ``prejuízo preto" ao cidadão. Desrespeitosa para com o usuário, cansado de esperar, e revoltado contra a ineficiência conectiva que lhe é imposta. Perigosa, porque a tecnologia de telecomunicações atravessa uma fase turbilhonal em que processos e instrumentos, antes avançados, são hoje inadequados e amanhã, obsoletos. E há dois eventos internacionais que tornam prudente esperarmos algum tempo antes de votarmos uma nova lei de telecomunicações. O primeiro é que, por diretriz comunitária, as grandes estatais telefônicas da Europa deverão ser privatizadas até 1998. Estão em gestação vários modelos regulatórios, cuja análise nos será útil para formatação do mais adequado à nossa realidade. O segundo evento é a explosão tecnológica nos Estados Unidos, que estão hoje discutindo a modernização de sua lei de telecomunicações de 1934. Tudo indica que cairão, ante o fogo da competição cruzada, as barreiras tradicionais entre as ``Bell's" regionais, a telefonia interurbana e internacional, a TV a cabo e a telefonia móvel digitalizada. E surgem novas formas de competição, como a transmissão por computador (Internet) e a penetração das distribuidoras de gás e eletricidade na telefonia, por meio do uso de fibras óticas (este último desenvolvimento é importante para nós pois enquanto apenas 2% das classes D e E são atingidas pela telefonia, no caso da energia elétrica a penetração é de 25%). Se votarmos uma lei antes que se defina o padrão mundial de competição tecnológica, correremos o risco de parir um estatuto anacrônico em seu nascedouro. Uma dessas ``leis que não pegam".
É de se esperar que prevaleça a interpretação dos juristas do Ministério das Comunicações, segundo a qual a exigência de lei regulamentar, inscrita na emenda constitucional, se limita à criação do órgão regulador e ao disciplinamento da privatização da telefonia básica. Não inibiria a imediata outorga dos serviços adicionados, com celulares e transmissão de dados. Qualquer outra interpretação seria um insulto aos usuários e uma vitória da diarréia normativa...

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