São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Impurezas é que fazem pensar

ROBERT DARNTON

Especial para "The New York Review"
Não se trata, então, de saber se a pornografia visava excitar o desejo sexual em geral ou apenas o desejo masculino, mas sim de saber se podemos reduzi-la a sua função de material de masturbação. Para tornarem seu argumento mais convincente, as feministas poderiam procurar aliados inesperados no campo da teoria literária, sobretudo no trabalho de Jean Marie Goulemot, que representa o que há de melhor nos estudos acadêmicos atuais sobre a pornografia.
Goulemot argumenta que a pornografia setecentista acercou-se mais do que qualquer outro gênero da meta de toda a literatura pré-Mallarmé -a de criar um "efeito de realidade", e, no caso, tão forte, a ponto de parecer eliminar a distinção entre literatura e vida (6). Nos romances pornográficos, ao contrário de outras formas de narrativa, as palavras impressas sobre o papel produziam uma reação imediata e involuntária no corpo do leitor. A ficção agia fisicamente, como se pudesse insinuar-se na carne e no sangue abolindo o tempo, a linguagem e tudo o mais que separava a leitura da realidade.
O argumento de Goulemot encaixa-se perfeitamente na alegação de Catharine MacKinnon, para quem "a pornografia é mais sexualmente eficaz do que a realidade que ela apresenta, mais sexualmente real do que a realidade" (7).
Mas a tese tem seus inconvenientes. Ela combina teorias do gênero e da recepção para propor a noção de um tipo ideal, algo assim como uma pornografia "pura" que operaria exclusivamente sobre a libido do leitor. Qualquer disrupção ("brouillage") -como desenvolvimento maior do enredo, complexidade psicológica, filosofia, humor, sentimento ou comentário social- deve mitigar o efeito e afastar o livro da "pureza" pornográfica.
Infelizmente para a teoria, a pornografia da época consistia principalmente em "brouillage", ou seja, naqueles mesmos ingredientes que deveriam criar impurezas. Seus grandes sucessos, "Histoire de Dom B... e "Thérèse Philosophe, ganharam destaque ao conduzirem seus leitores por complexidades narrativas e filosóficas. E Aretino, o pai-fundador, transitava entre o sexo e a crítica social em seus "Ragionamenti".
É verdade que Aretino era famoso pelas descrições explícitas de técnicas de cópula em seus "Sonetti Lussuriosi" (Sonetos Luxuriosos). Mas é improvável que os sonetos tenham sido tão amplamente lidos na França e é incorreto afirmar, como faz Goulemot, que Aretino "foi incansavelmente traduzido e retraduzido" para o francês durante o Antigo Regime.
Afora alguns de seus escritos religiosos e um único fragmento dos "Ragionamenti", os franceses não publicaram nenhuma tradução de sua obra entre 1600 e 1800. Em vez disso, publicaram e republicaram "L'Arrétin Moderne" -O Aretino Moderno-, de Henri-Joseph Du Laurens (primeira edição em 1763, com pelo menos 13 outras antes de 1789), uma coleção de escândalos feita de três partes de fofoca para uma de sexo.
O "Aretino moderno" da França setecentista de fato tinha muito em comum com seu ancestral italiano do século 16, mas era sobretudo um "libelliste" -isto é, um especialista em denegrir figuras eminentes da Igreja e do Estado. Tal como acontecia com a irreligião, é difícil distinguir difamação de pornografia nas obras "filosóficas" do Antigo Regime. Se a pornografia é um gênero, ela é um gênero tão misturado, que qualquer tentativa de definir o gênero "puro deve necessariamente falhar. Suas impurezas forneciam justamente os elementos que tornavam o sexo tão bom para pensar.
No final das contas, a teoria literária é incapaz de captar as características definidoras da pornografia do início da era moderna. Jean Marie Goulemot quase chega a reconhecer esse fracasso na conclusão de seu livro, quando brinca com a fantasia de uma "época áurea da leitura". Ele a localiza na França do século 18, quando os leitores podiam mergulhar nos textos como adolescentes, livres das inibições produzidas pela consciência crítica da literatura.
Com seu apaixonado primitivismo, talvez eles tenham usado a pornografia como modo de ceder a seus impulsos mais selvagens. Conta-se que alguns bibliotecários já encontraram traços de esperma, datados possivelmente do século 18, nas folhas de livros de sexo daquela época. Um pesquisador moderno poderia seguir os passos desses leitores há muito olvidados e, despindo-se de sofisticação excessiva, reagir da mesma maneira que eles?
A prova do êxito seria, para falar abertamente (mas Goulemot sabe contornar tamanha rudeza), um orgasmo. Nesse caso, os livros do "Inferno" poderiam funcionar como máquinas do tempo, projetando seus leitores para sensações que se extinguiram dois séculos atrás; e a pornografia poderia oferecer aos historiadores a chance que até agora não tiveram: um acesso direto às paixões do passado.

Continua à pág. 5-7

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