São Paulo, domingo, 9 de julho de 1995
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Um combate interior

NELSON ASCHER; RICARDO BONALUME NETO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

RICARDO BONALUME NETO
O crítico literário Boris Schnaiderman, um gentil professor aposentado da USP, não lembra um guerreiro. Mas em 1944 ele foi à guerra com a Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Suas experiências foram incluídas no livro ``Guerra em Surdina", agora relançado pela Brasiliense. A primeira edição do livro é de 1964, pela Civilização Brasileira. Foi pouco depois do golpe militar e isso prejudicou a divulgação de um livro sobre a guerra.
Em 1965, Schnaiderman visitou a Itália e foi a Montese, cidade bombardeada por canhões que ele ajudou a apontar e onde os brasileiros viveram sua maior batalha na Segunda Guerra. ``Quando estive lá, fiquei tolhido, não disse que era brasileiro".
Exagero. Em 95, Montese homenageou os brasileiros pelos 50 anos de sua libertação do nazi-fascismo. Outros veteranos brasileiros dizem que sempre foram bem recebidos por lá. Schnaiderman errou ao não se identificar em 65.

Folha - Como Boris Schnaiderman foi parar na FEB?
Boris Schnaiderman - Servi em 1942 no 2º Grupo de Obuses Auto-Rebocados do 1º Regimento de Artilharia da FEB, em Campinho, perto de Cascadura, no Rio. Morava em Copacabana. Poderia ter feito tiro de guerra -o que teria sido mais simples-, mas preferi o quartel. Queria me preparar, achava que a guerra era inevitável.
Havia uma necessidade de ordem prática, profissional. Eu me formei em agronomia em 1940 e não podia exercer a profissão enquanto não estivesse naturalizado (Schnaiderman é russo nascido na Ucrânia) e não tivesse feito o serviço militar. Me alistei e saí terceiro-sargento de artilharia.
Folha - Qual era sua função?
Schnaiderman - Na guerra, minha função era a de calculador de tiro. Fui convocado quase às vésperas do embarque e tive instrução de tiro quando chegava o momento de combater. Aprendi em plena ação. Entre os soldados, eram poucos os que estavam convictos de que era necessário lutar contra o nazismo. Por isso, foi uma surpresa muito grande o modo como os brasileiros se desempenharam.
O desempenho brasileiro foi muito bom, levando-se em conta a falta de preparo psicológico, a perplexidade dos que estavam sendo embarcados por um governo que se voltava para o Eixo e, de repente, virou para o lado dos aliados. Aquelas pessoas não podiam ter vontade de lutar. E, no entanto, lutaram. E lutaram bem.
Folha - O senhor tem acompanhado a literatura sobre a FEB?
Schnaiderman - Sim. É surpreendente que essa ficção tenha uma repercussão tão pequena. O livro do Roberto de Mello e Souza, ``Mina R", por exemplo, é um romance bom, forte. Saiu em 1973, está sendo reeditado, mas está esquecido. Era uma época ingrata para alguém se preocupar com o Brasil na guerra; o país estava em outra guerra, contra a ditadura.
Folha - Isso contrasta com o que acontece em outros países. Norman Mailer e Saul Bellow, por exemplo, começaram falando da guerra. Como se explicaria isso?
Schnaiderman - Eu acho que, em geral, a participação do Brasil na guerra foi algo que não tocou o povo. Quando íamos para a guerra, falavam da FEB como se fosse uma torcida organizada, diziam que ia ser tropa de ocupação. Quando voltamos, muita gente não acreditava que tivéssemos ido.
Folha - Como o senhor classifica seu livro?
Schnaiderman - É difícil de classificar. Não é bem um romance, não é bem um livro de contos. Os personagens de uma história com frequência aparecem em outra -mas há histórias que funcionam isoladamente, que são contos. O conjunto é uma narrativa sobre a guerra, uma obra de ficção com base na experiência vivida -o que não é novidade em literatura. Guardadas as proporções, por que Dostoiévski escreveu ``Recordações da Casa dos Mortos" como ficção? Afinal, é a experiência dele, talvez de maneira até mais direta do que eu faço no meu livro.
Folha - Por que guerra ``em surdina" -ainda mais vindo de alguém da artilharia, que faz um barulho desgraçado?
Schnaiderman - (risos) Justamente pelo contraste. É quase um oxímoro, "guerra em surdina", a guerra no interior da pessoa; não a guerra espetacular, dos grandes combates, mas o que o combatente sentia.

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