São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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``Auri sacra fames"

EDUARDO GIANNETTI

Muita gente imagina que a paixão desmedida pela riqueza -o "desejo abominável pelo dinheiro", do verso imortal de Virgílio- seja um fenômeno recente e característico do nosso tempo.
O egoísmo e a ganância à nossa volta seriam, de acordo com esta visão, um subproduto espúrio do sistema econômico que tomou conta do mundo a partir dos anos 80, com o fracasso do socialismo.
E na raiz da alienação e dos falsos valores que nos governam, os inimigos de sempre: o predomínio irrestrito da lógica do mercado, o capital globalizado e o neoliberalismo triunfante.
Que o culto do Bezerro de Ouro seja detestável, estou de pleno acordo. Que a paixão pela riqueza e o obscurantismo do prazer estejam em alta no planeta, não duvido. Que sonhar coletivamente esteja cada dia mais difícil, como negar? Mas daí a acreditar que tudo isso seja um traço singular da nossa época ou possa ser atribuído a vagas explicações holísticas, há uma enorme distância.
Como antídoto dessa atitude, tomo a liberdade de convidar o leitor a percorrer esta breve antologia da história do pensamento -clássico, cristão e moderno- sobre um tema que é tão perene quanto humano, demasiado humano: a paixão imoderada pela riqueza. Meu intuito é oferecer um rasgo de perspectiva histórica e, quem sabe, insuflar a perplexidade.

"Estar satisfeito com a nossa própria riqueza é a maior e mais segura riqueza... Nada é mais revelador de um espírito pequeno e mesquinho do que o amor à riqueza; nada mais honorável do que desprezar o dinheiro se você não o possui, mas dedicá-lo à beneficência se você o possui. (Cícero, séc. 2 a.C.)

"Quando surgiu a propriedade e o ouro foi descoberto, a força e a beleza perderam muito do seu brilho. Pois não importa quão belos ou fortes sejam os homens, eles em geral seguem atrás do mais rico. (Lucrécio, séc. 1 a.C.)

"Quem liga para a reputação se consegue agarrar seu dinheiro?" (Juvenal, séc. 1 d.C.)

"O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. (S. Paulo, séc. 1 d.C.)

"Toda riqueza provém do pecado. Ninguém pode ganhar sem que alguém perca. Se o pecado não foi cometido pelo atual proprietário da riqueza, então a riqueza é produto do pecado cometido por seus antepassados. (S. Jerônimo, séc. 4 d.C.)

"O ouro é uma coisa maravilhosa! Seu dono é o senhor de tudo o que deseja. O ouro faz até mesmo as almas entrarem no paraíso." (Colombo, 1503)

"Os ingleses têm pouco que desvie sua atenção do trabalho ou que diminua o domínio que têm sobre eles aquela propensão que é a paixão dos que não têm qualquer outra e cuja satisfação compreende tudo que eles imaginam como sendo sucesso na vida -o desejo de tornar-se mais rico. (J. S. Mill, 1848)

"O comércio é natural e, portanto, vergonhoso. O menos vil de todos os comerciantes é o que diz: `Sejamos virtuosos, já que assim ganharemos mais dinheiro do que os tolos desonestos'. Para o comerciante até a honestidade é especulação financeira. (Baudelaire, 1864)

"Por toda parte parece estar se espalhando algum tipo de droga, um comichão para a devassidão. As pessoas tornaram-se sujeitas a uma distorção de idéias sem precedentes, uma idolatria em massa do materialismo. Por materialismo, neste caso, refiro-me à idolatria do dinheiro pelas pessoas, à adoração do poder inerente a um saco de ouro. Subitamente parece ter ocorrido às pessoas a noção de que o tal saco contém todo o poder e que tudo o que lhes foi dito e ensinado até o presente por seus pais é bobagem... Repito: alguma coisa saturada de materialismo e ceticismo está se espalhando pelo ar, uma adoração do ganho fortuito, do desfrute sem trabalho. Toda fraude, toda vilania é perpetrada a sangue frio; as pessoas são assassinadas para que se roube, nem que seja um rublo, dos seus bolsos. (Dostoievsky, 1876)

"Um utiliza pesos falsos, outro põe fogo na casa depois de fazer um bom seguro, um terceiro falsifica moedas e três quartos da mais alta sociedade se dedicam à fraude lícita, tendo só ações e especulação na cabeça: o que os impele? Não a necessidade, pois seus negócios não vão mal... O que os aflige e impele, dia e noite, são uma terrível impaciência diante da lentidão pela qual seu dinheiro se acumula e um prazer igualmente terrível diante do dinheiro acumulado... Os meios utilizados pelo desejo de poder são outros, mas o mesmo vulcão continua ardendo e o amor desmesurado reclama o seu sacrifício. O que antes se fazia `por amor a Deus', faz-se hoje por amor ao dinheiro, quer dizer, em nome daquilo que agora dá a máxima sensação de poder e boa consciência. (Nietzsche, 1881)

"O impulso à aquisição, à busca do ganho, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem nada a ver com o capitalismo. Tal impulso existe e tem existido entre garçons, médicos, artistas, cocheiros, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores e mendigos. Pode-se dizer que ele tem sido comum a todos os tipos de homens, de todas as condições, em todas as épocas e países do planeta, onde quer que a possibilidade objetiva dele exista ou tenha existido. (Weber, 1920)

"Quando a acumulação de riqueza já não for mais de alta importância social, haverá grandes mudanças no código de ética... Estaremos, então, em condições de ousar atribuir ao motivo-monetário o seu verdadeiro valor. O amor pelo dinheiro... será reconhecido pelo que ele é, uma morbidez bastante repulsiva, uma dessas propensões semicriminosas e semipatológicas que se conduz com um arrepio para os especialistas em doenças mentais. (Keynes, 1930)

"Aquilo que o homem atual típico deseja conseguir com o dinheiro é mais dinheiro, com o objetivo de ostentar e sobrepujar àqueles que eram até então seus iguais... Mais do que isso: fez-se do dinheiro a medida aceita da inteligência. Aquele que ganha muito é esperto; aquele que não, não é. Ninguém gosta de ser visto como um tolo. (Bertrand Russell, 1930)

"Quem compreender o macaco fará mais pela metafísica do que Locke. (Darwin, anotação solta, 1856)

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