São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Transplantes

O poeta Augusto dos Anjos definiu o amor como ``a união de dois corpos para formar um cadáver". E a morte é de fato inexorável. Pela atual legislação sanitária, pessoas que morrem ou bem são cremadas, e seus órgãos e tecidos tornam-se cinzas; ou são enterradas, hipótese em que seus órgãos e tecidos servirão de alimento para os saprófagos.
Sem querer negar a importância do saprofitismo para a reciclagem do material orgânico e, portanto, para a própria reciclagem da vida no planeta, existe uma terceira hipótese -bem mais nobre- que agora começa a ser discutida: a doação de órgãos.
Esta Folha promoveu, na última terça-feira, um debate entre políticos e especialistas de saúde e direito para analisar a conveniência ou não de leis que procurem ampliar a oferta de órgãos para a doação.
As opiniões foram, como era de se esperar, discordantes. O único consenso foi que o caos na rede de saúde pública dificulta muito a execução dos transplantes. Faltam desde equipes capacitadas para a retirada de órgãos até um sistema eletrônico eficaz de comunicação entre hospitais para localizar doadores e possíveis receptores.
O fato de o sistema de saúde passar por uma séria crise não impede porém que se adotem medidas para tentar salvar vidas ou aliviar o sofrimento de milhares de pessoas. Em São Paulo, 10.000 pessoas aguardam um rim; 5.000, uma córnea. O próprio SUS gasta R$ 400 milhões ao ano em hemodiálises para pacientes renais, situação que poderia ser em parte revertida se uma lei tornando todos os brasileiros potenciais doadores fosse adotada. Aqueles que não quiserem doar teriam de manifestar essa intenção em vida ou, dependendo do projeto, a família do morto também poderia evitar a doação.
Os que se opõem à iniciativa alegam que ela poderia incentivar o mercado negro de órgãos. O raciocínio, decerto bem-intencionado, peca pelo simplismo. Se uma lei, embora seja considerada boa, não é adotada por temor de que venha a ser burlada, então não haveria sentido em fazer leis, pois elas todas podem ser e são burladas. O comércio de órgãos é crime e assim deve ser tratado.
De resto, pesquisa realizada pelo Datafolha em São Paulo mostrou que 75% dos paulistanos doariam seus órgãos, mas 63% deles não sabem como fazê-lo. A eficácia de campanhas pró-doação é sempre limitada. Pensar na morte é algo que maioria das pessoas prefere evitar; tomar medidas concretas para fatos relacionados à própria morte é ainda mais difícil.
Assim, uma lei facilitando os transplantes seria bastante bem-vinda, respeitados, é claro, os direitos dos que se opuserem à medida ou até mesmo de seus familiares.
Há uma enorme diferença humanitária entre alimentar com nova vida um semelhante ou dar de comer aos vermes os restos de um corpo em decomposição.

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