São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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O Fundo Brasil de Cidadania

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Imagine se desde o início de nossa história, por ocasião dos principais ciclos de expansão que caracterizaram a nossa economia -o do pau-brasil, do ouro, da borracha, da cana-de-açúcar, do café, do cacau, da pecuária, da soja, da industrialização e da fase mais moderna de diversificação relacionada ao processo de globalização-, tivessem os brasileiros decidido que uma parcela do valor adicionado em cada atividade produtiva seria destinado a um Fundo Brasil de Cidadania.
Este seria um patrimônio comum de todos os residentes no Brasil, os quais teriam igual direito sobre o mesmo. Os recursos destinados a esse fundo seriam por sua vez aplicados em investimentos produtivos bastante seguros e rentáveis, com muita transparência e conhecimento da população a respeito dos critérios de seleção efetuados por pessoas escolhidas democraticamente, pela sociedade civil junto aos segmentos tanto de empresários quanto de trabalhadores.
Sempre que houvesse inflação, deveriam ser reinvestidos no fundo recursos em volume suficiente para compensar a respectiva perda de poder aquisitivo. Que tivessem os brasileiros também decidido que a receita anual decorrente das aplicações daquele fundo seria distribuída na forma de um dividendo exatamente igual para cada residente no Brasil, com o único condicionante deste estar morando no país há pelo menos um ano.
Tivesse isso ocorrido desde há quatro séculos, ou mesmo pelo menos há 40 anos, teríamos hoje a possibilidade de no Brasil estarmos pagando um dividendo social ou uma renda de cidadania a cada um dos aproximadamente 160 milhões de habitantes, suficiente, no mínimo, para ninguém estar na miséria ou com fome.
Será a instituição de uma renda básica ou mínima igual para todos algo impossível de ser alcançado, algo que só possa ser proposto por alguém como o viajante português Rafael Hitlodeu, personagem de Thomas Morus em ``A Utopia"? Mas isso já existe e ocorre num dos 50 Estados dos EUA.
No Alasca, a população muito discutiu nos anos 70 o que deveria fazer, sobretudo com vistas às gerações vindouras, diante da sua grande riqueza natural não-renovável, o petróleo, a qual proporcionaria crescente receita por algumas décadas para depois, se não se encontrasse mais reservas, diminuir gradativamente.
Em 1976, após intenso debate e com base em referendo popular, cujo resultado foi de 75.588 votos a favor e 38.518 contra, resolveu-se criar uma emenda à Constituição do Estado, a qual instituiu o Fundo Permanente do Alasca. Pelo menos 25% de todas as receitas de royalties, leasing e outras decorrentes da exploração de minério recebidas pelo Estado seriam aplicadas num fundo permanente, cujo principal seria utilizado unicamente em investimentos que produzissem renda conforme especificado em lei.
Intensos debates se realizaram, por quatro anos, sobre a forma que deveria ter o fundo. Se de um banco de desenvolvimento, que iria financiar empreendimentos para ajudar a diversificar a economia do Alasca -algo semelhante ao BNDES-, ou se iria tomar a forma que acabou sendo escolhida: a de um fundo público que seria administrado com a preocupação de sempre proteger o principal, com um conselho de pessoas altamente confiáveis que seguiria regras de extrema prudência visando uma combinação de segurança e rentabilidade.
Em 1980, US$ 900 milhões foram apropriados para o fundo permanente. Aumentou-se de 25% para 50% a proporção de certas receitas de minérios que deveriam ser destinados para o fundo permanente. Desde o início os recursos foram aplicados em títulos de renda fixa.
A partir de 1982, também em ações de empresas domésticas e em empreendimentos imobiliários. De 1989 em diante, em ações de empresas em outros países, como, por exemplo, da Aracruz Celulose, no Brasil. O principal do fundo evoluiu de US$ 1 bilhão, em 1980, para mais de US$ 15 bilhões, em 1994.
Em 1982, iniciou-se a distribuição de dividendos do fundo permanente para todos os residentes, de qualquer idade, no Estado. O primeiro cheque foi de US$ 1.000. Em 1983, cada residente recebeu US$ 386; em 1984, US$ 331; em 1985, US$ 404; em 1986, US$ 556; em 1987, US$ 708; em 1988, US$ 827; em 1989, US$ 873; de 1990 em diante, sempre mais de US$ 900.
No ano passado, cada um dos 535.574 habitantes recebeu um cheque de US$ 984. Durante os primeiros 13 anos de operação, o programa de dividendos pagou cerca de US$ 5 bilhões a todos os cidadãos do Alasca.
Conforme estudos realizados por inúmeros economistas, dólar por dólar, este programa de dividendos produziu melhores impactos macroeconômicos do que qualquer outro tipo de gasto governamental. Ajudou a criar milhares de empregos e a aumentar a renda disponível das famílias do Alasca com uma maneira sem precedentes de tratar a todos igualmente.
O que acontece no Alasca é a aplicação do que vem sendo gradativamente proposto por um número cada vez maior de cientistas sociais, como os que, em 1986, fundaram a Rede Européia da Renda Básica. Os países desenvolvidos têm introduzido formas diversas de renda mínima ou de imposto de renda negativo.
Desde que o Senado Federal aprovou o projeto de lei que institui o Programa de Garantia de Renda Mínima, em 16/12/91, o qual ainda se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, cresceu o interesse pelo assunto e, em 1995, iniciaram-se programas de garantia de renda mínima para as famílias carentes com filhos até 14 anos, nos casos em que a renda ``per capita" não atinge certo patamar a cada mês, como R$ 35, em Campinas, ou R$ 50, no Distrito Federal.
As prefeituras de Salvador, Santos, Betim estão tomando iniciativas nessa direção. Os deputados Paulo Teixeira e Paulo Ruben Santiago, do PT, apresentaram projetos para instituir programas de renda mínima nos Estados de São Paulo e Pernambuco. Vereadores de Jundiaí, Ribeirão Preto, Franca, Campos, São Joaquim da Barra e tantos outros municípios apresentaram projetos semelhantes.
No próximo dia 12 de agosto, haverá na Câmara Municipal de Campinas uma audiência pública, com a presença do prefeito José Roberto Magalhães Teixeira (PSDB), do governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque (PT), dos beneficiários do programa, de estudiosos, prefeitos e vereadores de diversos outros municípios, para debater a melhor forma de se garantir o direito de os pais ou responsáveis terem um mínimo de renda para que nenhuma criança deste país esteja fora da escola.
Está ao nosso alcance transformar os fundos sociais, que mal beneficiam os trabalhadores do mercado formal, em um fundo que possa efetivamente resgatar a cidadania para todos os brasileiros. Caso haja a vontade política, será a maneira de garantir, a partir de 1996, que todas as pessoas venham a ter o direito de usufruir minimamente do patrimônio da nação, conforme proposto por Thomas Paine no ensaio ``Sobre a Justiça Agrária", há 200 anos.

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