São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Estado globalizado e esfera pública civil

TARSO GENRO

Dois temas fundamentais, que emergem da atual reforma constitucional, vão decidir a sorte da esquerda brasileira para a próxima década. São eles a regulamentação do fim do monopólio das telecomunicações e a regulamentação da norma da Constituição que acaba com o monopólio da Petrobrás.
Se ficarmos de fora deste processo, estaremos desertando de uma luta histórica da sociedade brasileira e favorecendo a gestão desses dois setores estruturais de uma sociedade moderna pela ótica pura do ``privado".
Os partidos de esquerda, dentre eles o meu, foram flagrantemente derrotados porque foram impotentes para apresentar alternativas com viabilidade política e negociá-las com setores de centro-esquerda, os quais foram seduzidos pela força cooptativa ou mesmo pelo conteúdo das propostas do governo.
Ao não compreender que as funções atribuídas ao Estado, pela esquerda, nas décadas de 50 e 60 são absolutamente incompatíveis com a globalização já realizada e que a lógica de qualquer Estado, nessa situação histórica, só tende para o ``privado" -ao não compreender esses fatos estruturais-, abdicamos de propor alternativas de controle público não-estatal (externo, de natureza social) como respostas de fundo ao privatismo triunfante.
Ao assumir esta postura -contra as reformas sem propor reformas- a esquerda identificou-se politicamente com este Estado que aí está: reprodutor de desigualdades, protetor de corporações e submetido por séculos aos interesses das elites retrógradas da pior espécie. A esquerda confundiu a defesa fundamental dos direitos básicos da cidadania com a defesa de um estatismo que sempre foi hostil à cidadania excluída, pobre ou simplesmente não-apadrinhada.
É preciso repensar, no bojo da 3ª revolução tecnológica e na era da globalização econômica, uma nova identidade para o ``público", que se confunde cada vez menos com o estatal.
É evidente que o Estado permanecerá como uma estrutura material de poder, mas não é menos verdade que ele será cada vez mais subordinado à lógica da necessidade econômica, orientada pelos monopólios transnacionais, que têm forças para induzir a economia mundial segundo os seus interesses.
Uma sociedade democrática, num novo patamar civilizatório, não poderá mais ser criada pela simples tutela do Estado, o que torna o estatismo clássico cada vez mais afastado da idéia do socialismo, cuja essência deriva da livre organização dos indivíduos livres e, portanto, da transferência da força cogente da burocracia do Estado para a sua sociedade civil.
É preciso proporcionar uma radical inversão da lógica política ensejada pelo Estado da 1ª e da 2ª revoluções industriais que, pelo populismo ou pelo ``welfare state", tutelava a sociedade em nome do ``bem comum".
O Estado da pós-modernidade, com os meios da terceira revolução tecnológica, seguramente será cada vez menos autônomo em relação à força econômica dos monopólios. E também será mais forte para defendê-los, se não for controlado pela sociedade pelos mesmos meios tecnológicos mais modernos, então acessíveis ao cidadão comum.
As novas características do Estado atual exigem uma ``mudança de mão", em relação aos velhos projetos reformistas ou socialistas, vigentes até o fim da década de 60. Uma nova fase de autonomia relativa do Estado só poderá se dar a partir de um controle externo, cada vez mais incidente e mais estruturado juridicamente. Um controle vindo ``de fora", ou seja, de fora do Estado, que só poderá retomar as suas funções públicas combinando a democracia representativa com a gestão pela sociedade, das suas empresas e de outras instituições importantes do Estado.
O Estado perdeu o controle das telecomunicações e do petróleo. A sociedade deve recuperá-lo pelo controle social, público, não-estatal, como ato verdadeiro e imediato para iniciar a democratização do próprio Estado. O sentido do ``público", na era da globalização da economia, também transcende qualquer projeto particular de nação.
Nos dias de hoje, quem não considerar esse fato ficará cada vez mais isolado, já que é preciso pensar também as questões internas do país, a partir de uma nova ordem internacional e de relações (entre países e povos) capazes de alterar a dependência e a subordinação para relações de equilíbrio e cooperação.
Um Estado sem o controle da sua cidadania não buscará relações democráticas e cooperativas. Ficará subjugado às ``imperiosas" obrigações da submissão econômica e sem um projeto histórico de nação. O dilema da esquerda no final do milênio é inverter a sua proposta clássica, baseada num Estado autoritário ou tutelador, para fazê-lo estrutura de poder subordinada à democracia da sociedade civil.

Texto Anterior: SELETOS CONVIDADOS; USO PERVERSO; MEMORIOL
Próximo Texto: Sobre a cultura midiática
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.