São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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ADOLFO BIOY CASARES

- Vamos ver se você me traz em seguida o prontuário desse jovem Elias Correa.
- Alguma vez você não vai estar com pressa?
- Não seja má, Nélida. Se hoje você não me fizer esperar, trago-lhe do campo ovos frescos ou uma dúzia de pêras.
- Prefiro os ovos -disse Nélida. Ruborizou e foi procurar o prontuário. Dali a pouco Ventura gritou:
- Perdeu os ovos, Nélida. Já vou indo, porque não quero perder o trem.
Na viagem, no vagão restaurante, tocou-lhe de companheiro de mesa um estrangeiro muito falador, que se apresentou como discípulo de um tal Paul Rivet. De tantas coisas que lhe contou, só recordava a cerimônia de iniciação de um povo da Oceania. O candidato entrava num curral, onde o mestre, mascarado com uma cabeça de touro de grandes chifres, dançava entre os candidatos. O que recebia uma cabeçada no peito era o eleito. Pouco depois da comida, Ventura desceu na estação Coronel Florentino Jara. Na plataforma o esperava o mencionado Godoy, que lhe perguntou:
- Senhor Ventura? Faça-me o favor de me seguir até o estacionamento.
Ali havia dois ou três automóveis e uma carruagem.
- O nosso é o Flint -indicou Godoy.
Era um conversível não muito maior que um Ford ou um Chevrolet; mas em aparência, ao menos, mais potente. Estava com a capota. Godoy lhe disse:
- Se for correta a informação que tenho, o senhor trabalha num jornal.
- ``Última Hora".
- Que bom. Se entendi bem, o senhor não é da polícia.
- Claro que não.
- Mas que bom. Com o senhor a gente poderá falar sem desconfiança.
- É claro. O senhor tem algo para dizer?
- Sobre o desaparecimento do senhor Correa?
- Exato.
- Nada. Nada mesmo. Como sem dúvida deve saber, o senhor Correa foi com amigos -inimigos nunca teve- marcar o gado a ferro. Ali se acidentou e, para restabelecer-se -tinha sido atingido por uma vaca, e não me canso de repetir que em certas ocasiões a vaca é mais brava que o touro-, deitou-se à sombra de uma ramagem. Quando os amigos lembraram, quiseram ver como estava, havia desaparecido.
Conversando se fez curto o trajeto. Quando chegaram, entre cachorros latidores, à fazenda, recebeu-os com uma lamparina na mão a caseira, uma senhora Julia, de porte imponente e que deve ter sido bela em sua juventude. A Ventura, ela pareceu atraente. A senhora lhe disse que tinha o jantar pronto.
- Sem pressa, quando o senhor quiser, passe à sala de jantar.
- Não sabe quanto lamento que tenha tido o trabalho -respondeu Ventura.- Comi no trem.
- Segundo me disseram, as refeições no trem já não são as mesmas de antes. Alguma disposição lhe restará, quero crer, para beliscar o que lhe preparei... Sei perfeitamente que minha comida, simples, mas feita com amor, não pode se comparar com a que lhe servem na capital...
Ventura compreendeu que nada o salvaria nessa noite de comer duas vezes. O que esperava menos ainda era comer leitão. Estava delicioso, mas sem dúvida seria pesadíssimo, pouco recomendável nas circunstâncias. Sentindo que incorria num erro, comeu rapidamente, quem sabe para deixar o quanto antes no passado a parte de culpa que poderia atribuir-se...
Contra toda expectativa dormiu a noite inteira. Pesadamente, isso sim, com sonhos em que a senhora, com lábio brilhoso pela gordura do leitão, explicava algo. No dia seguinte, bastante cedo, tomou desjejum, composto de mate amargo e biscoitos. Enquanto lhe cevava o mate, a senhora lhe dizia que Elias Correa não tinha inimigos.
- Amigos, em troca, muitos, e precisa ver como gostam dele. Mas nenhum está a sua altura. É um santo. Totalmente desprendido. Viu como agora dizem que a pessoa deve amar a si mesma? Olhe, eu creio que ele, tão bom e tão aberto com todo mundo, não se amava... Nesta casa não encontrará uma única foto sua. Como se eu previsse o que ia acontecer, mais de uma vez lhe disse que se fotografasse, ainda que fosse para me dar de lembrança.
- E ele, que respondia?
- Levava as coisas na brincadeira. Dizia que já incomodava bastante quando estava em casa, para que se fizesse recordar com fotos quando não estava.
Com as seguintes palavras, a caseira concluiu a conversação:
- O certo é que agora não o tenho nem em uma foto para me consolar, mas o tenho aqui -tocou o peito, do lado do coração- e daqui ninguém vai tirá-lo.
Ventura se perguntou como podia mudar de assunto. Lembrou-se do encargo de Nélida Páez.
- Senhora, acha que esta tarde poderei levar a Buenos Aires uma dúzia de ovos frescos?
- Como não! -respondeu a senhora.
Despacharei com poucas palavras o resto daquele dia. Ventura foi ao local onde continuava a marcação do gado. Interrogou várias pessoas; entre outras, dois amigos de Correa; as respostas foram sempre coincidentes. Correa foi atingido por uma vaca. Tranquilizou aos que o socorreram, dizendo-lhes que não estava mal nem muito dolorido, mas sim cansado, e que ia estender-se sob a ramagem e logo, sem dúvida, estaria reposto.
A ramagem era baixinha e sombria. Em seu interior um homem medianamente alto não poderia estar sentado sem tocar os galhos com a cabeça.
- Ali o deixamos -contou um de seus amigos- e seguimos trabalhando. Pouco depois eu quis ver como ele estava e apareci na ramagem: Elias havia desaparecido. Pensamos que havia ido até as casas, embora ninguém o tivesse visto partir. Seguimos com a marcação, não por indiferença pelo que pudera acontecer a Elias, mas porque tínhamos prendido todo esse gado e havia que marcá-lo, para soltá-lo depois ao campo e deixá-lo comer e beber.
- A verdade é que continuaram trabalhando sem se importar com o que teria acontecido a seu amigo Correa.
- O que o senhor diz prova que não entende como são as coisas. Preocupado com o que podia ter acontecido a Elias, mandei um menino à casa da fazenda, para averiguar se tinha ido para lá, mas ninguém, em sã consciência, deixa o gado fechado, sem pasto nem água. Da casa da fazenda voltou o menino e nos disse que lá Correa não estava. Nos preocupamos.
Depois de um tempo, Ventura chegou à alarmante conclusão de que sua viagem tinha sido inútil. O que as pessoas do lugar sabiam, ou estavam dispostas a dizer, era o que se sabia em Buenos Aires. ``Ainda bem", pensou Ventura, ``que a idéia de fazer a viagem não foi minha". De resto, compreendia que a irritação do chefe era inevitável. Queria uma história que interessasse ao público, não as razões por que Ventura regressaria sem ela.

3
Às sete da noite Ventura chegou de regresso a La Verde. A senhora Julia recebeu-o chorando. Em vão tentou consolá-la.
- Que Elias não estivesse na ramagem quando o procuraram, dá que pensar. Mas, francamente, não vejo por que em algo irremediável.
A senhora Julia respondeu:
- Para mim, ele saiu com a intenção de voltar aqui, mas antes de chegar caiu no caminho. Quem sabe onde estará, jogado como um cachorro.
- Não é estranho que ninguém o tenha visto?
- Estavam entretidos marcando o gado.
Chorando serviu-lhe a comida. Ventura comeu com um apetite que procurou dissimular, porque nas circunstâncias poderia ofender dona Julia.
Depois de comer guardou duas ou três coisas na mala, certificou-se de que não deixava nada em armários e gavetas.
- Não está esquecendo de nada? -perguntou dona Julia.
Tinha aparecido no quarto como uma sombra dolente. Ventura olhou-a nos olhos, tomou-a como se a agarrasse e com firmeza não isenta de suavidade jogou-se com ela na cama.
- Da parte do senhor Correa -disse, gravemente.
Julia olhou para ele, ruborizou-se, pareceu furiosa, mas depois, como se tivesse se recomposto, respondeu:
- Obrigada.
Acompanhou-o até a rua de entrada, onde Godoy esperava com o Flint.
No trem de volta, calhou que o guarda fosse um homem a quem conhecia havia anos. Este conseguiu-lhe um compartimento de duas camas, onde as possibilidades de viajar sozinho eram maiores que em outro de quatro, que ainda estava livre.
Depois de comer com apetite no vagão-restaurante, voltou a seu compartimento. Pôs a caixa com os ovos na cama alta e nesta se jogou vestido. Se em alguma estação surgisse um companheiro de compartimento, da cama de cima seria mais fácil ignorar sua presença.

4
Acendeu uma luz, para ver a hora. Faltava pouco para chegar. Passou um pente pelo cabelo, ajustou a gravata. Instintivamente soube que havia outra pessoa no compartimento. Acendeu uma luz principal e pôde ver então que estava num compartimento de quatro camas e que, na de baixo, em frente, havia um desconhecido de bombachas e botas. ``Vou procurar o guarda", pensou, ``para lhe perguntar por que me mudou de compartimento". Antes de descer, refletiu: ``Ontem à noite eu estava cansado e comi demais, mas não sou um garotinho para que me levem sem me despertar de um compartimento a outro".
Enquanto descia, ouviu uma voz a suas costas que dizia:
- Parece que o senhor andava me procurando.
- De onde tirou essa idéia? -protestou.- Desci para buscar o guarda e protestar por ter-me colocado neste compartimento, com o senhor como companheiro.
- Devo crer que ainda não adivinhou quem sou? Vem neste trem de regresso de La Verde? Mostraram-lhe a ramagem onde me deitei depois que a vaca me acertou?
- O senhor é Elias Correa?
- É claro. Olhe que demorou para adivinhar.
Estava tão aturdido, que disse para ganhar tempo:
- Deixar meio mundo preocupado por seu desaparecimento não é uma falta de seriedade?
- Por Julia, a caseira, eu lamento, mas pelo resto... Que amigos da gente pactuem com uma ditadura assim é a pior traição. Não podia seguir vivendo junto a eles.
Para recompor-se, quis estar só. Olhou pela janelinha. Estavam chegando. Disse:
- Tenho que aclarar uma coisa com o guarda.
Saiu para o corredor. Aproximou-se do guarda e perguntou:
- Ontem à noite, quando me mudaram de compartimento, não despertei?
- Não, senhor. Não o mudamos. O senhor tem o mesmo compartimento de duas camas que lhe dei ontem à noite.
- Como explicar, então...? -calou-se sem terminar a pergunta. Agregou:- Me acompanha, por favor?
Ouviu que o homem lhe dizia ``com muito prazer" e abriu a porta de seu compartimento. Era de duas camas e, claro, Elias Correa, ou a pessoa que dissera ser ele, não se encontrava ali. Não teve que inventar explicações, tão difíceis como insatisfatórias, porque entravam em Constitución.
A caminho de sua casa passou pela rua Moreno. Como um sonâmbulo, entrou no Departamento de Polícia e se dirigiu ao escritório de documentação pessoal. Ali estava Nélida.
- Aqui te trago os ovos -disse-lhe.
Ela sorriu e, entregando-lhe uma pasta, disse:
- Obrigado. Aqui está o prontuário que você me pediu.
Ventura entreabriu a pasta. Em seguida viu uma fotografia da pessoa que havia estado com ele, um pouco antes, no compartimento de quatro camas. Compreendeu que a explicação do que havia ocorrido não estaria naquela pasta, de modo que a devolveu a Nélida Páez.
- Já viu o que você queria? -perguntou ela.
Sorriu como um bobo, porque não soube responder.

Tradução de JOSÉ GERALDO COUTO

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