São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Uma época violenta e apressada

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Se o século passado começou mais cedo e durou mais de cem anos (teve início em 1789, com a Revolução Francesa, e não em 1801), o que ora finda não só começou mais tarde (em 1914, com a Primeira Guerra Mundial) como, a rigor, já terminou (em 1990, com a débâcle da União Soviética). Razão pela qual o historiador inglês Eric Hobsbawm, ao condensá-lo num formidável livro de quase 600 páginas, chamou-o, muito apropriadamente, de ``breve". Breve, desatinado, regressivo e violento -talvez o mais violento de todos. Digno, portanto, de entrar para os anais como ``A Era dos Extremos".
Com ela, Hobsbawm encerra um longo trabalho de reconstituição e análise dos últimos 200 anos, até então restrito ao século 19 e dividido em três volumes: ``A Era das Revoluções", ``A Era do Capital" e ``A Era do Império", todos editados pela Paz e Terra. Em agosto a Companhia das Letras estará lançando ``A Era dos Extremos".
O primeiro ato extremado do século 20 foi a guerra mundial que marcou o fim da ``Era do Império" (1875-1914). Dali até o término da outra guerra mundial, vivemos o que Hobsbawm qualifica de ``Era da Catástrofe", seguida de 25 ou 30 anos de extraordinário crescimento econômico e vertiginosas transformações sociais, uma ``Era de Ouro". E que se encerrou por volta de 1973, com os primeiros sinais do ``desmoronamento" que deu início a uma era sem nome, pois vários são os nomes que seus flagelos (crises, incertezas, decomposição) poderiam inspirar.
T.S. Eliot desconfiava que o mundo se acabaria com uma lamúria, não com uma explosão. ``O breve século 20" -diz Hobsbawm, parafraseando o poeta- ``se acabou com as duas". A explosão do comunismo soviético e a lamúria dos saudosistas. Não apenas dos saudosistas do Império Vermelho, mas também dos que sentiam (e ainda sentem) saudades de valores (políticos, morais, estéticos) que começaram a ser sepultados com o Império Austro-Húngaro e o feudalismo czarista.
Pelas contas de Hobsbawm, estamos há cinco anos em pleno terceiro milênio, preludiando, portanto, uma nova era. Tendo em vista as desgraças que já nos amofinavam nos estertores do século 20 (surtos nacionalistas, fundamentalismo religioso, neonazismo, catástrofes ecológicas, a ubiquidade da fome e da miséria, a desintegração de velhos padrões de relacionamento social humano, a quebra dos elos entre as gerações, a corrupção urbana, a globalização da economia, entre outras), suas estimativas para o século 21 não podiam ser otimistas:
``O mundo do terceiro milênio quase certamente continuará a ser de política violenta e mudanças políticas violentas. A única coisa incerta nelas é aonde irão levar".
O que fazer? Não imitar Lênin, por exemplo, é uma boa providência. Até porque, conforme Hobsbawm explica à exaustão, a Revolução Russa, apesar de ter sido o acontecimento mais determinante e influente do século 20, não teria como se repetir da mesma forma num mundo onde as pessoas e as nações, contrariando o prognóstico otimista de Marx, há muito deixaram de propor apenas problemas que podem resolver.
A última frase de ``A Era dos Extremos" é um conselho:
``Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão".
``Uma das ironias deste estranho século" -comenta o historiador- ``é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo -o medo- para reformar-se após a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econômico, oferecendo-lhe alguns procedimentos para a sua reforma."
Esta é um das muitas observações surpreendentes do livro -ao menos para aqueles que só guardam uma visão demonizada do comunismo soviético. Sem deixar de criticar seus desvios, assim como os de seus epígonos (Stálin e Mao são tratados como ditadores com as mãos sujas de sangue), nem de admitir, sem lamentar, que as revoluções feitas em nome do comunismo se exauriram, Hobsbawm recusa-se a engrossar o cantochão dos superficialistas. Ainda é cedo, segundo ele, para orações fúnebres pela morte do comunismo. Quando nada porque os chineses, um quinto da raça humana, continuam a viver num país governado por um Partido Comunista.
O farol de proa e popa de Hobsbawm -bem mais abrangente que o do professor Roberto Campos- ilumina quase todas as áreas da experiência humana, repertoriando e analisando fatos históricos, conquistas científicas, litígios econômicos, escolas literárias, correntes filosóficas, movimentos artísticos e frivolidades comportamentais. Seu autor era de fato o homem certo para a ingente tarefa de condensar criticamente os 76 anos que duraram o século 20.
Hobsbawm, só um pouco menos célebre como crítico de jazz, é um dos últimos espíritos enciclopedistas de que dispomos. Sua intimidade com a música popular e outras diversões de massa, como o cinema e a televisão, foi de grande valia para ``A Era dos Extremos", já que ao longo dela as chamadas ``artes plebéias" se impuseram ao aristocratismo vigente no século passado. Ele não lamenta essa reviravolta cultural, ao contrário, mas reconhece que chegamos ao fim do milênio com um déficit deprimente de invenção e qualidade.
``Seria difícil fazer uma lista de pintores de 1950 a 1990 aceitos como grandes figuras (por exemplo, dignos de inclusão em outros museus que não os do país do artista) comparável a uma lista idêntica do período do entreguerras", constata o historiador, para, em seguida, depois de abordar outras searas artísticas, esmiuçar as causas do declínio dos gêneros clássicos da grande arte e da literatura.
Para Hobsbawm, ele não se deveu a nenhuma escassez de talento. ``É mais seguro supor que haja rápidas mudanças mais nos incentivos para expressá-los, ou nos canais para expressá-los, ou no estímulo a fazê-lo de uma determinada forma, do que na qualidade de talento existente. Não há nenhum bom motivo para supor que os toscanos hoje sejam menos talentosos, ou mesmo que tenham um senso estético menos desenvolvido, que no século da Renascença florentina. O talento nas artes abandonou os velhos meios de buscar expressão porque os novos meios existentes eram mais atraentes, ou recompensadores, como quando, mesmos entre as guerras, jovens compositores de vanguarda podiam ser tentados, como Auric e Britten, a compor trilhas sonoras para filmes, em vez de quartetos de cordas."
Como se vê, ``A Era dos Extremos" não tem só Marx, Keynes e Von Heyk, mas também Benjamin e McLuhan. Numa epígrafe, até o cineasta Pedro Almodóvar dá o ar da sua graça.
Quanto a nós, brasileiros, salvo por Luiz Carlos Prestes, Lampião, Getúlio Vargas, Oscar Niemeyer e, en passant, Chico Buarque, pouco contribuímos para o século 20 tal como Hobsbawm preferiu enquadrá-lo. Não deixamos, porém, de enriquecê-lo -ou empobrecê-lo- com nossos proverbiais extremos, no campo da desigualdade social, da corrupção e do desperdício.

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